domingo, 5 de Janeiro de 2003-scan
PROSPECTIVA E FORMAÇÃO PROFISSIONAL(*):
DIÁRIO DE 1971
(*) Este texto de Afonso Cautela, na onda prospectiva do ano de 1971, terá ficado inédito
No limiar da revolução pedagógica anunciada pelo advento dos computadores (quando os teremos dentro de casa, como o telefone ou a electricidade?), a Educação Permanente é um pleonasmo.
A partir de agora, será mais fácil compreender a inevitabilidade e a urgência de alargar e desinsularisar o conceito de Educação.
A partir de agora, será mais fácil compreender que a Escola deverá ampliar o seu âmbito, cair dos muros dos edifícios onde se tem confinado.
A partir de agora, será mais óbvia a necessidade da Imprensa (utopia ou alternativa inevitável?) assumir inteiras responsabilidades e os outros mass media, que ainda estão subjugados à Publicidade comercial ou à Propaganda política, esforçarem-se por informar e formar - em suma, permanentemente educar.
Sem querer, quase sem querer mas por força dos factos que a isso conduz, chegamos ao conceito de Educação Permanente ou Educação Continuada - que é a necessidade de o homem viver em convívio e comunidade, comunicando através dos meios naturais e das técnicas que ampliam esses meios. Esta evidência esconde afinal uma verdade profunda: a Educação reencontra o homem, quando for praticada as 24 horas do dia, os 363 dias do ano.
O ensino profissional será outra coisa: ocupação de horas, de dias, de semanas, com períodos de ponta e outros de acalmia, com horários, programas, exames (até quando?), testes, provas de apuramento e selecção. Para uma ordem social que exige competição e concorrência (que se baseia na concorrência) a escola de ensino prepara os indivíduos para a corrida, para o "struggle", para a selva.
Mas Educação é tudo: o livro, o jornal, o filme, a televisão, a própria escola, a colectividade desportiva e cultural, a audição radiofónica e o concerto, o centro de convívio (até um café!) são (veículos de) Educação, são os pontos de encontro entre o indivíduo e a comunidade, onde o comportamento se transforma.
Num mundo em mutação, a Educação é sempre permanente - ou não é. O pleonasmo serve, portanto, apenas para demonstrar até que ponto ainda estamos longe de fazer coincidir o homem consigo próprio. Até que ponto a Educação - assim entendida - é de facto a arte e a ciência capaz de realizar essa coincidência, quer dizer, desalienar o homem das suas básicas escravidões.
EDUCAÇÃO E “HOMEM OBSTRUÍDO"
Na explosão de conhecimentos vai radicar uma das causas que levam agora todos os poderes constituídos à unanime resolução de reformar as Escolas. De mês para mês, acumula-se um material de informação que já ninguém consegue controlar, seleccionar e muito menos assimilar.
Neste "afogamento" de quem aprende - e pretende agir com base nessa aprendizagem - vai encontrar-se uma das causas da paralisia que ataca as instituições encarregadas tradicionalmente de transmitir bagagem cientifica. Porque tal bagagem excedeu todas as possibilidades individuais de controlo.
Vive-se hoje o absurdo de termos construído um edifício sumptuoso e sermos obrigados a ficar numa choça - porque o edifício não tem portas de entrada nem janelas de saída... (o que Kierkegaard censurou a Hegel em particular e aos sistemas metafísicos em geral).
O homem vê-se desarmado, porque simultaneamente não pode reaver o instinto animal que perdeu e ainda não adquiriu o instrumento intelectual que, substituindo o instinto, o dote de novos poderes sobre a circunstância e sobre si próprio.
A isto acrescenta-se a explosão dos mass-media e a opressiva, cancerosa proliferação da imagem que bombardeia cada vez com mais força e frequência o desprevenido cérebro do (tele-) espectador.
A passagem da Era Gutemberg para a Era da Imagem electrónica equivale à demissão de um direito inalienável: o de escolha. Os mass-media significam o despotismo do indiscriminado: através de um reduzido número de canais, é completa a sujeição do indivíduo e o seu poder ou direito de escolha completamente abolidos.
Quando se medita em tudo o que actua sobre a formação-deformação do indivíduo, a Escola diminui de importância face aos outros meios de dominação pedagógica: é possível, através dos visuais extra-escolares, influir com muito mais violência e eficácia. Dir-se-á mesmo que a acção da Escola ficou dissolvida e anulada na das grandes redes transmissoras.
Menos urgente do que refazer escolas e universidades seria, assim, despertar os cérebros do círculo vicioso que representa o envolvimento sistemático e devorador que os mass-medía exercem sobre o cidadão em idade escolar ou pós-escolar.
E mais importante do que reorganizar métodos, abolir exames, descongestionar disciplinas e salas de aula, reorganizar serviços dentro dos estabelecimentos de Ensino, seria compenetrarem-se os meios de Informação da responsabilidade educativa que lhes cabe: a Imprensa, o Livro, o Cinema, não podem colocar-se à margem porque são os factores mais directos da Educação Permanente.
Por vezes é com o alibi da objectividade que tenta travar-se a função educativa da Informação; outras, com a desculpa da especialização; outras ainda, com a evasiva pura e simples, com a pura irresponsabilidade e o puro escapismo, designados então de diversão,
Mas o que abarca a totalidade do fenómeno humano e define a deontologia profissional ou ética do trabalho em função dessa totalidade não-compartimentada, sabe que não é possível encontrar fundamento seguro da Imprensa crítica fora de uma filosofia da História; e de que a palavra é uma arma, para o Bem ou para o Mal.
Rejeita tanto o alibi da objectividade como o da especialização (cada um no seu campo, não lhe devem importar as consequências e liames com a finalidade última do que se diz, escreve, faz).
A todos os níveis de actividade, o grave problema que se põe ao homem "asfixiado" (de papel, de imagens, de palavras, de informações, de conhecimentos, de ciências) é o da escolha, logo o das prioridades. Só a Educação, no sentido mais lato e mais rigoroso, com ou sem auxilio de computadores - o tratamento automático da palavra - pode contribuir para vencer o impasse.
ESCOLHER HOJE O AMANHÃ
Relacionada com o crescimento económico, a Educação toma o nome de Formação Profissional. Tem, portanto, um significado e um objectivo mais definidos. Destina-se a preparar os obreiros da sociedade tal como ela se fará no imediato amanhã.
Mas - e o primeiro problema surge - se a tecnologia imprime uma velocidade cada vez maior aos acontecimentos, a preparação profissional desactualiza-se ao mesmo ritmo. E a pergunta a fazer já não é de como se procedia ontem, mas o que amanhã será exigido: de governos e cidadãos, de chefes e subordinados, de professores e alunos.
Em função das mudanças e transformações previstas (ou apenas pressentidas) a formação técnica de hoje não prescinde do modelo de sociedade que se pretende ir construir e que já se está construindo. Falar do Ensino é, ao mesmo tempo, inquirir do conjunto da evolução histórica (de um país ou de um conjunto de países).
Nesta corrida contra-relógio para acertar o passo com os mais desenvolvidos, alguns países encontram-se em posição singularmente vantajosa. Estando, muitos deles, a programar os seus planos de Fomento, pressupondo que nenhuma mudança se operará no Mundo, arriscam-se a ver ultrapassados, em pouco tempo (anos ou meses?) todo o arsenal de boas vontades, capacidades, energias e capitais investidos.
Então, que fazer? E que Ensino dar às novas gerações? Antes de tudo e acima de tudo, urge prepará-las para o imprevisto e para o imponderável. Do que acontece segundo o imaginado não advirá nenhuma alteração sensível; preparadas para o que der e vier, as novas gerações terão de saber enfrentar aquilo que escapou às regras estabelecidas e às previsões seguras.
É a excepção e a ciência da excepção o que deverá ensinar-se. Uma propedêutica de um conteúdo não fixo mas susceptível de se adaptar e assimilar, como método de trabalho, o conteúdo eventual de novas aprendizagens, o "futurível" x, y ou z.
Os teóricos que hoje investigam os domínios da gestão empresarial falam de uma nova ciência - a Prospectiva - em que depõem esperanças e na qual confiam como força capaz de evitar que os factos pulem por cima dos homens. Uma mentalidade nova (mas completamente nova) terá de nascer, segundo esses cientistas e práticos.
De nada nos serve - afirmam eles - ensinar hoje uma técnica que, meses após, será substituída por outra. A reciclagem e os Institutos de novas profissões vêm, como remendos quase sempre tardios, procurar um acerto de agulhas e providenciar para emendar os erros de um Ensino em moldes estáticos tradicionais, de um ensino retrospectivo. E sempre ao preço de valores humanos e materiais desperdiçados: porque não se apresenta económico( rentável) refazer por completo um curso, uma carreira, em suma, uma vida. Urgente é que hoje a escolha se faça de acordo com amanhã.
Em nenhum outro campo como o do Ensino Profissional se põe com tanta acuidade a necessidade de uma Prospectiva, quer dizer de uma sondagem das possibilidades do futuro ao qual os jovens de hoje e homens de amanhã terão de corresponder. Em eficácia mas também, se possível, em liberdade.
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(*) Este texto de Afonso Cautela, na onda prospectiva do ano de 1971, terá ficado inédito■
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domingo, 5 de janeiro de 2003-scan
PROSPECTIVA:
DIÁRIO DE IDEIAS EM 1971(*)
Com a Prospectiva , o futuro deixou de ser alvo, o objectivo, meta a atingir em data mais ou amenos longínqua, para se tornar num ingrediente activo do presente, determinando neste uma completa viragem de perspectiva nos métodos de pensamento e acção.
O futuro deixou de se encarar como distância a percorrer para se considerar uma dimensão (a mais importante dimensão) do que presentemente se constrói e pretende construir.
A previsão - eixo de uma mentalidade científica que só recentemente chegou às ciências humanas e do espírito, que só há pouco tempo começou a informar o estatuto de uma nova ética - instalou-se portanto nos costumes intelectuais dos países industrialmente mais avançados e os institutos de pesquisa multiplicam-se, inspirados uns nos outros, ou corrigindo-se uns aos outros.
O conceito de progresso nem sempre foi aceite de maneira tão definitiva e mesmo tácita, porque também nunca foi tão clara a necessidade de progredir para sobreviver e tão lúcida a desmistificação do conceito "futuro", ou dos preconceitos que em nome dele se cultivavam.
O que a Futurologia ou Prospectiva hoje pretendem é re-inventar esse conceito à luz dos dados objectivos e da realidade material que tudo condiciona, que quase tudo determina.
As críticas ao progresso tinham por fundamento, principalmente, a ignorância de uma antropologia capaz de reintegrar as ciências humanas na sua diversidade convergente e estas com as ciências exactas; mas tinham também como causa a incultura que separava a realidade material da realidade psíquica e as contradições que abismam o homem em si próprio (que o alienam), ao distanciar o individual do colectivo para por completo o reificar e lançar no caos do objecto.
A arte e ciência da Prospectiva não nasceu por acaso ou por um luxo, mas surgiu do e no momento exacto em que, para reabilitar o conceito de progresso, se verificou a necessidade de uma palavra-chave, de uma filosofia, de uma axiologia fundamental. A imagem da sociedade a construir é, com efeito, absolutamente necessária quando se procede à destruição e reconstrução do que o homem considerava indigno de si.
A Prospectiva, partindo de um inventário ou balanço tecnológico, passando depois a uma programação ou planificação das actividades económicas, dirige-se em última instância para a invenção de um eixo de valores capazes de dinamizar a inerte matéria e a inércia da matéria.
Prisioneiro das alienações que a tecnologia da sociedade de consumo não criou mas intensificou, o homem critica o "progresso técnico" como culpado do retrocesso moral e humano. Mas não se trata, quando visto à. lupa, de um esquema inamovível, nem, tão pouco, de retrocesso: só que a lucidez com que hoje se critica e contesta é também mais exigente do que aquela com que a barbárie de outros séculos se auto-criticava. Multiplicaram-se as alienações, talvez, mas apurou-se também a vigilância crítica que as escalpeliza.
A Prospectiva aparece assim como termo alternativo da antinomia desespero-esperança, alienação-liberdade, e não como uma segregação de cérebros lunáticos, para embelezar, mitigar ou mistificar a brutal realidade dos factos. Mergulhados na caótica e dramática realidade, os olhos que lançamos para o futuro não nos distraem dela: antes pelo contrário, são a única forma de nos permitir que o presente limitado e sem horizontes afogue ou sufoque as disponibilidades humanas de esperança, logo as possibilidades de acção.
Suporta-se melhor um presente de lutas e sofrimentos, se ao menos há a esperança de trabalhar para um futuro possível, imaginável. Não por escapismo e fuga, mas por responsabilidade e consciência das dificuldades e das fortes razões de derrota e descrença que nunca faltam a quem testemunha o seu tempo, as grandezas e misérias do nosso tempo.
O FAMOSO "EMBARAÇO DA ESCOLHA”
Perante a avalanche de livros e autores que diariamente nos é proposta (ou imposta), mais do que nunca se verifica (verifica o leitor de profissão ou devoção) a necessidade de eleger, de seleccionar, de saber o que afinal vale a pena.
Dado que também o impacto publicitário chegou aos livros, entendidos assim como a mercadoria que de facto são, na sociedade onde há que consumir, quer o consumidor queira quer não – concorrendo para salientar autores que o não merecem ou merecem menos e para esquecer outros de que o futuro falará, - mais difícil se torna sabê-lo.
E o famoso "embaraço da escolha" transforma-se num drama, para quem queira escolher certo.
Dado ainda o pouco tempo de que o triste mortal dispõe, numa vida (mesmo folgada) que tem, não só para dedicar à literatura, mas para mil e uma outras coisas e até para viver - num tempo, ainda por cima, em que a imagem, da TV ao cinema e à revista, absorve quase por completo as atenções ainda (raramente) disponíveis - o problema torna-se mesmo paroxístico.
Aparentemente, a introdução de um critério prospectivo na Literatura viria desembaraçar-nos um pouco de tal aperto, mas só aparentemente. Porque nada mais fluida e mais variável do que os conceitos de vanguarda, de modernidade e de originalidade. Escolhermos nós os autores susceptíveis de não estarem desactualizados e ultrapassados daqui a 5 dias, 5 meses, ou 5 anos, implica um processo instaurado a toda a estética literária, e uma intransigente atitude para com os hoje proclamados, por altissonantes altifalantes, como reis.
Um processo instaurado ao que vive e ao que morre é, em literatura, mais difícil ( mesmo perigoso) do que em qualquer outra actividade.
A verdade, porém, é que a visão de um terceiro mundo literário, que a pouco e pouco se emancipa e revolta, parece constituir a mais segura via de escolha dos autores e literaturas para amanhã. Terceiro mundo que terá de se entender não só ligado ao que geográfica e economicamente assim se conhece, mas ao que, disseminado nas culturas prósperas (nas sociedades da abundância) vem de uma situação subdesenvolvida, de uma secular frustração: povo ou classe pode ter encontrado, neste ou naquele escritor, o seu porta-voz exemplar.
“CONTEMPORÂNEO DO FUTURO"
A função do escritor hoje só pode ser, fundamentalmente uma: Chame-se-lhe intelectual, critico, filósofo, pensador, poeta, etc, o objectivo que hoje se apresenta como dominante a quem pensa é o de criar, com o pensamento (e com a imaginação) uma força capaz de transformar o mundo e a vida.
Mas o que hoje se verifica também com o congestionamento provocado pela aceleração histórica e pelo crescimento tecnológico, é a desproporção entre a enormidade da tarefa imposta ao pensador e as suas exíguas possibilidades de ordem material. Mas como o pensamento continua a ser, inevitavelmente, uma tarefa individual (não há hipótese de colectivizar a inteligência por mais que os dogmáticos afirmem que sim!), o pensador tende a trabalhar em equipa, forma rudimentar e única admissível de unir individualidades sem as liquidar.
Por mais revezes e desaires a que a solidariedade de intelectuais dê lugar, o “contemporâneo do futuro" tem de acreditar no grupo, na animação de grupo, na equipa e no trabalho de equipa como únicas formas de equilibrar liberdade com eficácia, sem deixar que uma delas (es)trague a outra.
UMA ÓPTICA DIFERENTE DE VER O MUNDO
A política não se escolhe: Somos escolhidos por ela. Obedece a condições objectivas, de base, inelutáveis, que a ciência estuda e estabelece, e às quais o desenvolvimento (económico, político, social, cultural) terá por sua vez que obedecer também.
O tempo das opções políticas por motivos subjectivos, ideológicos, temperamentais, tende a acabar. Agora, não é a vontade (de um indivíduo ou de um grupo) que comanda, que determina opções; ou se for, erra. E os erros pagam-se cada vez mais caros. A política deixa de ser uma arte para ser cada vez mais uma técnica.
A Prospectiva, com todas as matérias que lhe são afins, investiga essa técnica.
Prospectiva é uma óptica diferente de ver o mundo.
Prospectiva é o exercício da imaginação criadora em todos os campos.
O homem cada vez mais excede o político no sentido de "engagement" partidário, porque cada vez mais o "engagement" é humano. Leia-se, para tal, a «Introdução à Política do homem», de Edgar Morin. Cada vez mais a ética se sobrepõe aos compromissos partidários e cada vez mais a política é uma exigente e ampla comparticipação de compromisso não com grupos mas com toda a comunidade humana
O "encombrement", a delapidação do equilíbrio e recursos naturais, a intoxicação das consciências (adormecimento, entorpecimento) pelos "mass media", a poluição do habitat humano, o crescimento urbano e consequências sociais, os computadores e sua utilização, a força atómica e suas aplicações, a conquista da lua e suas consequências, o trabalho e o tempo livre, o impacto da ciência sobre a sociedade, - diríamos que são apenas alguns tópicos de alguns outros problemas cujas soluções são típica, necessária e inevitavelmente prospectivas, Quer tenham ou não esse nome.
SINAIS DE PROGRESSO
O noticiário da Imprensa é dominado pelos factos que acentuam os aspectos "barbáricos" da civilização. No entanto, num limbo de indiferença e de silêncio, outras notícias há de factos que significam evolução, progresso, enriquecimento humano.
Sem esquecer o que de Abjecção existe no mundo, porque não evidenciar, e sublinhar os "sinais de Progresso"?
Na Literatura, na Educação, na Medicina, nas Ciências e Relações humanas, diariamente verificamos que se designam de progresso os sinais de barbárie, enquanto os sinais de evolução humana se escamoteiam ou hostilizam.
Somos pelo progresso que se não identifica unilateralmente com progresso técnico mas que abrangendo todo o complexo da realidade humana se definirá em última instância por uma Ética: Uma Ética Prospectiva, como a definiu Jean Fourastié num livro desse nome.
Somos principalmente contra as mistificações do progresso e contra os que dele se servem e falam em seu nome para justificarem acções e atitudes às vezes bem regressivas e retrógradas.
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(*) Este texto de Afonso Cautela, do tempo da prospectiva, ano de 1971, terá ficado inédito, apesar dos dois nomes de autores citados : Edgar Morin e Jean Fourastié
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1-5-diário71-2- inédito de 1971 – diário de um idiota – mein kampf
O BALANÇO DA CIVILIZAÇÃO [JUNHO, AGOSTO, OUTUBRO E DEZEMBRO DE 1971 ]
7/Junho/1971 - A proliferação desordenada de estímulos, factos, ideias e conhecimentos, parece ser a característica dominante da cultura a que se chama tecnológica.
A bio-resposta parece ser também uma proliferação desordenada de células e respectiva patologia chamada cancro.
Em ambos os casos, o processo de sub-divisão, hipertrofia, multiplicação e congestionamento, encontra paralelo no congestionamento urbano e, como ele, é sintoma de doença, de engarrafamento, sem horizontes de cura.
Quer no campo social, quer no campo cultural (ciências e conhecimentos), quer no campo vital (!), a civilização é cancerígena.
Dentro desta tendência para a multiplicação, não admira que se multipliquem os simpósios pare obviar à multiplicação, congressos, encontros, semi simpósios, etc (nenhuma palavra define tão bem a civilização anarco tecno-analítica, como esta: etc) que tentam fazer o balanço, a síntese, o ponto de tantas disciplinas. Fala-se então muito de actividade inter-disciplinar.
Afogado em tanta especialidade, meio maluco de técnicas e tecnicismos, o especialista não tem tempo de se coçar quanto mais de filosofar sobre o alcance da sua profissão: convidam-no então, de vez em quando, a participar em alegres comícios onde se filosofa sobre a ausência da filosofia, onde se apresentam sínteses das sínteses que não existem, onde se lamenta com profundíssimas análises o mal da hiper-análise, onde maniqueisticamente se critica o maniqueísmo do dualismo plato-kantiano e arredores. Onde, em suma, com palavras, se pretende fazer frente à civilização da Verborreia verbal e em papel se combate a civilização do papel. Onde se propõe mais meia dúzia de ciências a haver, que venham resolver problemas criados pela multiplicidade das múltiplas ciências que já havia.
30/8/1971 - Entre a vasta gama de especialistas que servem a ordem tecnocrática, há um curioso grupo encarregado da propaganda, que exerce a opressão intelectual mais crua e crassa em nome da mentalidade científica e da ciência, sempre!
Característico desse funcionalismo (público) é uma atitude de sistemático achincalhamento de tudo o que, esse mesmo funcionalismo, decide a priori e sem crítica, sem estudo, sem conhecimento, classificar de impostura irracionalista. É impostura irracionalista tudo o que convém à ordem vigente.
Chovem, então, as "desmistificações" da astrologia, do budismo, da mística cristã, do mito, da magia, de tudo, enfim o que, sob o anátema do "obscurantismo irracionalista" os tais funcionários do regime entendem pôr fora de campo, e porque não entendem, e porque os incomada.
Muito corrente, também, nesse grupo, é a constante alegação de que se encontram ao serviço da ciência, de que tudo neles é científico, de que a racionalidade e o espírito positivo rege todos os seus actos, desde a privada (vida deles) até à pública.
Entre nós ouvem-se muito os experimentalistas, os da arte cibernética, os da crítica estruturalista, os da nova crítica e já se ouviram os do neo-realismo.
VNa medicina, por exemplo, é cada tonelada de ciência que a gente fica esmagado. Tudo em nome da ciência - incluindo as drogas farmacêuticas, as transplantações e as teorias alimentares que até já os da profissão provaram estar erradas.
É que, além do mais, esses "cientistas" ignoram que a sua famosa "ciência" - não a que eles criaram, mas a que se limitam a reproduzir, - não pára de evoluir, porque não é mais nem menos do que um frágil edifício de "teorias" (de hipóteses), constantemente postas à prova na prática e dentro da realidade, sobre as quais teorias nada de eterno, definitivo, imutável e dogmático se pode construir, sobre as quais teorias se vai edificando, portanto, uma prática sempre precária e provisória e transitória, tanto mais frágil e vulnerável ( a prática), quanto menos os tempos vierem comprovando a verdade, a racionalidade, o fundamento e a fertilidade dessas tais teorias.
Assim é que, perante os de uma ciência que o deixou de ser a partir do momento em que se transformou em dogma, a partir do momento em que cristalizou e deixou de evoluir (não há ciência que resista ao seu uso e abuso dogmático, incrítico) o investigador out-sider continua a ser considerando um "impostor", um "curandeiro", um veículo de crendices .
Não falando já da sujeição em que se encontra a (chamada) ciência de uma indústria e de uma tecnologia completamente ao serviço da exploração do homem pelo homem, será preciso citar, só como pequeno exemplo, a obediência da Medicina à indústria química?
CRÍTICA DA PSEUDO-CIÊNCIA
Em 1960, no livro “O Despertar dos Mágicos”, fazia-se a crítica dessa pseudo-ciência que, ao serviço da exploração e da degradação humanas, se continua a apresentar como imaculada. Logo a Union Rationaliste, fundada em 1930 e com sede na Rue de L'École Polytechnique, 16 - Paris 5 , desencadeava contra os autores uma campanha de tal modo histérica, que ficou marcada data em que o "crime legalizado”estava finalmente desmascarado e o local onde ainda lhes doía. A raiva e o furor que tomaram, de repente, tão sisudos senhores, tão objectivos, científicos e racionalistas como esses que a gente por aqui atura, marcaram bem a data e local.
Entre nós, de nada serviu António Sérgio ter andado a pregar, como talvez mais ninguém no mundo, o que vem a ser ciência e qual a ciência que importa e de como se faz ciência pensando. Como ele sempre fez: o amor das novas hipóteses, o ousar teorias, o indagar e desbravar caminhos, a crítica constantemente exercida pela ciência às suas próprias "descobertas" (provisórias, sempre), a ciência entendida como PROBLEMÁTICA, tudo isso esquecem, ou nunca souberam, os que agora tomados do vírus “neopositivista", ou estruturalista, ou positivista-ainda-à-moda- do-Teófilo-Braga, vêm chagar a paciência dos que pacientemente continuam a ensaiar hipóteses, na modesta e apagada fainasinha de afinar os seus próprio intelectos (primeiro), de pesquisar que hipóteses interessam hoje ao avanço do mundo para amanhã (depois).
Como se sabe (mas não sabem os tecnocratas da crítica) a imaginação é o nome que tem a ciência quando se alia à poesia. Os autores de «Le Matin des Magiciens» tiveram que inventar um ismo - o realismo fantástico - para designar o que não fosse nem o dogmatismo da razão nem a superstição do sentimento. Os surrealistas já barafustavam contra as antinomias anacrónicas que separavam a inteligência do coração, o intelectual do afectivo, a teoria da prática, a poesia da ciência, o uno do múltiplo, o colectivo do individual, o tradicional do novo, o manual do cerebral, o espírito da matéria, a história da actualidade, a fé da experiência, a análise da intuição, etc, etc, toda essa lista de prós e contras, única e exclusivamente inventados pela ordem estabelecida, que é sempre maniqueísta nos ruminadores da ciência e nunca nos seus criadores.
Na imaginação criadora - rigorosamente entendida como a faculdade soberana do homem - se fundiam todas as antinomias que não são imputáveis à imaginação mas à sua degradação em “ciência ". Na imaginação estava a palavra. E no ódio à imaginação se unem hoje todos os que, sob o alibi da ciência que nunca criaram nem hão-de criar, julgam liquidar todos os que a criam e continuar a servir-se deles e dela.
SOL PARA TODOS OS COLONIZADOS DA INTELIGENTZIA
11/10/1971 - De cada vez que os doutores em crítica me dão com o ponteiro na tola e gritam ciência - porque me acham um crítico muito impressionista lá na gíria deles - faço um esforço de memória e colecciono aqueles homens de ciência que me são de cabeceira, de que fui, sou e serei assíduo frequentador.
Perlustrando um pouco as estantes e cedendo ao pedantismo doutoral de citar nomes, pedantismo a que os doutores constantemente me remetem, vejamos e anotemos como contributo a uma bibliografia do futuro homem de ciência: António Sérgio, Arthur Clark, Bernard Lovell, Linus Pauling, Julian Huxley, Fred Hoyle, Aldous Huxley, Teilhard de Chardin, Einstein (os textos filosóficos e humanistas, claro!...), Foucault, Lévy Strauss, Galileo, Giordano Bruno, Camille Flamarion, Maurice Maeterlinck, Asimov, Josué de Castro, J.B.S. Haldane, Robert Oppenheimer, Freud, Jung, Gaston Bachelard, Jacques Monod, etc
Pois serão estes nomes todos, nomes de literatos? De poetas? De místicos? De irracionalistas? De anti-cientistas?
De cada vem que um doutor em crítica classifica de "jornalismo”, com ar de soberano desprezo, o ainda possível pensamento público, nesta terra inimiga das ideias e do imaginário, é necessário, para não quebrar o moral, a gente lembrar-se de que tem à mão, ali na estante, os bons amigos que têm ido fazendo menos solitária e angustiante esta peregrinação entre compatriotas, que têm, na fronteira da ciência e da imaginação, alimentado o sol à luz do qual depois todos se vão aquecer.
Se Jacques Monod se encontra nas estantes deste pobretana, deste auto-didacta, deste irrecuperável anti-doutor, não é porque ele tenha a petulância de dominar o pensamento científico de Jacques Monod, hoje o maior herege da Biologia, um dos tais pensadores de fronteira, um dos tais heterodoxos. É apenas porque alinha ao lado de outros hereges da ciência. Biologia e materialismo dialéctico, biologia e filosofia, eis o que o Aprendiz auto-didacta, eis o que se não deixou doutorar pelos colonizadores da inteligentzia, vai aprender em Jacques Monod.
PORQUE SÃO ANTI-ECONÓMICOS OS ESQUEMAS DA ECONOMIA CLÁSSICA
17/12/1971 - Para se fazer entender dos que o hostilizam ou combatem, o herege terá que utilizar a linguagem e a estratégia do adversário (o conformista e funcionário de qualquer ordem estabelecida). Se os números estatísticos, as curvas de rendimento e o cálculo custo-vantagens são os argumentos que normalmente convencem o conformista, há que lhe falar em termos de rentabilidade, mesmo no que aos problemas de saúde e bem estar psicossomático das populações respeita.
No que à saúde pública importa, é muito mais barato prever do que prover. Precaver, por exemplo, mediante hábitos de higiene alimentar e de higiene geral uma epidemia de gripe, custa muito menos ao Estado - se o Estado se quiser incumbir disso - do que, depois da epidemia declarada, recorrer à vacina, à terapêutica e aos múltiplos panos quentes conhecidos, que não impedem os doentes de ficar dias e semanas na cama, dando rombo valente na Economia nacional... Isto sem falar nos prejuízos não propriamente contabilizáveis que até são mais importantes.
Regra geral, entende-se Medicina Preventiva principalmente como vacinação: mas digamos que a vacina já não é preventiva e que a verdadeira prevenção começa na higiene entendida como ataque à causa das causas.
Se um etnologista estudasse os diversos padrões culturais com o propósito de saber qual deles consubstancia o mais aperfeiçoado estádio de civilização e de progresso, talvez concluísse que o padrão tecnológico (ou tecnocrático?) não representa, de maneira nenhuma, um estilo definitivo e ideal de progresso, e isto à luz dos próprios critérios, da própria axiologia, das próprias filosofias de valor inerentes a esse padrão.
Há, de facto, desfasamentos tão gritantes na sua estrutura, que, desde logo, conclamam uma certa reserva, para não dizer uma certa hostilidade, por parte do etnologista, mormente se ele for também um pouco crítico e se teima em utilizar aquele tipo de raciocínio lógico que faz a glória e orgulho do tal supradito padrão cultural.
Os desfasamentos mais notórios, iríamos encontrá-los nos campos da saúde a da doença. Embora haja à vista medidas que se impõem como as mais aconselháveis pelo mais elementar bom senso, pela mais estrita lógica, uma incompreensível inércia continua a determinar tipos de comportamento aberrante, absurdo relativamente aos próprios conceitos do supra-supra dito padrão.
No caso da gripe: estabelecido (pelas autoridades que emitem opinião) que seria relativamente fácil empreender campanhas higiénicas de prevenção, o observador imparcial, o tal etnologista com seu cheirinho de crítico, vai, ano após ano, verificando que a higiene é apenas um capítulo (morto) de certas disciplinas e manuais escolares e de que, na prática, os prejuízos se acumulam nas crises, deixando declarar-se (a gripe) o que podia e devia simplesmente evitar-se. Tal como as cheias no Ribatejo, ano após ano, os incidentes na linha do Estoril, os naufrágios na costa, os acidentes de viação, etc, etc. Continua a verificar-se o que podia pura e simplesmente evitar-se.
Digamos que o conceito de Higiene é um dos tais (muitos) a restabelecer em termos prospectivos, pois é bastante retrospectivo o que por enquanto permanece, nas referidas escolas e nos referidos manuais. Correspondendo ele - conceito de Higiene - a toda uma teoria geral da saúde, que por sua vez é consequência de toda uma teoria geral do mundo e da vida, se entendermos a teoria microbiana como relevante, é óbvio que os cuidados higiénicos continuarão a orientar-se exclusivamente no sentido de combater o vírus (ou a bactéria), relegando o resto para o secundário.
Um exemplo retirado ao quotidiano de todos os portugueses: mesmo a legislação em vigor impõe certos cuidados de "higiene" no fabrico do pão. O próprio público, insensivelmente "educado" pelos hábitos que lhe impõem, é levado a exigir um mínimo de limpeza, um pouco por intuição, um pouco por lenta subconsciencialização dessa necessidade. No entanto, o critério de Higiene a que me referia é bastante mais profundo e exigente. Mais lato. Se os cuidados de limpeza são óbvios, necessários, convenientes e desejáveis, muito mais importante para a Higiene como alguns outros (mais exigentes) hoje a entendem é, no que ao pão se refere, todo o processo de fabrico desde o teor da farinha (se de cereal biológico, se de cereal quimificado, se integral, se refinada) até ao (não ou sim) uso de fermentos industriais, grau de cosedura, misturas, etc.
Quer dizer: o conceito de higiene deixou de ser quantitativo para ser essencialmente qualitativo. Dependendo esse conceito de uma filosofia dietética mais geral e, por sua vez, de uma filosofia terapêutica: se causal como a naturopática, estará a higiene muito mais interessada no teor das farinhas do que na limpeza das padarias; se sintomática, muito mais interessada no micróbio do que nas causas profundas que determinam, através da alimentação, toda uma resistência orgânica das populações às endemias como a gripe e etc.■
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1-7-diário71-1-countdown – diário das ideias fixas de eh (ecologia humana)
A CIVILIZAÇÃO MORIBUNDA E O CRÍTICO ABJECCIONISTA [MARÇO, ABRIL E MAIO DE 1971]
Nos textos a seguir apresentados, extraídos de um diário inédito de 1971, é curioso verificar que as ideias, quando nascem, são muito mais interessantes do que quando crescem.
Como as crianças, perdem a piada quando se tornam adultas.
Quase todas as intuições que iriam tomar corpo no projectado movimento ecológico, encontram-se nestas páginas, escritas entre Março e Dezembro de 1971.
Escritas apenas 3 anos antes do 25 de Abril, ainda hoje podem suscitar os ódios e malquerenças de todos os imobilismos.
Talvez porque a crítica visava o ambiente, no seu sentido mais lato, incluindo, obviamente, o político.
Lisboa, 27/7/1997
MALEFÍCIOS DA IMAGINAÇÃO
8/3/1971 - Em princípio e em abstracto, não há ninguém que não estime a imaginação criadora. Todos os que respeitam a cultura (e outros valores da dignidade ocidental, etc, etc.) dizem respeitar também a imaginação. Aos poetas, prestam-se lindas homenagens póstumas. Aos grandes filósofos (depois de bem mortos e enterrados) também. E aos criadores da ciência, idem-idem, aspas-aspas.
Mas o que se verifica na prática e quando a ocasião surge (quer dizer, quando o bicho ainda não tem morrido e com ele a peçonha) é uma feroz perseguição aos inventores, especialmente se actuam no campo mais dominado pelo imobilismo fossilizado dos instalados: a investigação ou imaginação científica.
Todos conhecem inúmeros exemplos: mas por agora, basta citar o sempre clássico Galileo e o ainda recente (quente no túmulo) Wilhelm Reich.
Porque a verdade é esta: da ciência conquistada vive todo um populoso grupo de pessoas que até se chamam, a si próprias e quando calha, cientistas, homens de ciência, sábios (que Lao Tse nos absolva) mas que se limitam a parasitar o que foi criação dos autênticos criadores, sempre e é claro devidamente perseguidos na sua época pelos que detinham então o poder académico.
São esses os que por definição exercem mais obstinada resistência à “Imaginação", sempre que esta surge sob a forma de novas teorias, que é a forma particular assumida pela imaginação criadora quando no campo da investigação científica.
E então é ver como os grupos de força constituídos, perseguem o autor da «teoria», até que de vez o e a consigam eliminar, ou até que de vez a doutrina (ou teoria) vença, consiga vencer, alargando-se então a todo o espaço cultural com a velocidade do fogo na palha.
Então, sim, todos o saúdam (se acaso o "rebelde" ou "out-sider" ainda não tiver morrido), todas as academias lhe prestam homenagem, todos proferem discursos lindíssimos de divulgação e panegírico em sua honra.
Assim tem sido, assim é e assim continuará a ser. Os "malefícios da imaginação" igualam quase os do tabaco e revelam-se em todo o seu tamanho e virulência num meio que acima de tudo (mas acima de tudo) abomina a imaginação e seus subversivos portadores.
Esta posição implica, entre outras dificuldades, a definição de um Sistema (o Establishment) como um todo, -- Sistema que, depois, irá identificar-se, em última instância com uma categoria de classe mas de classe que pode estar dentro da mesma classe e aí nasce a grande confusão -- definição que a intelligenzia ortodoxa dita da esquerda, evidentemente, se nega a admitir, porque seria ao fim e ao cabo admitir que nem sempre os que se dizem defensores de uma classe oprimida o são e bastas vezes mesmo são até (segundo portas travessas) os seus opressores mais directos.
Por exemplo: quando Henri Lefèbvre se insurge, em nome do marxismo, contra os tecnocratas, quer frisar que o (seu) pensamento de esquerda não alinha com e tecnocracia dita capitalista.
Só não nos explica como é que é possível não alinhar com a tecnocracia , desde que se aceitem os postulados básicos dela: a cibernetização do homem, através da técnica, da tecnologia e da indústria, ou seja, do Sistema.
Posições como a de Raymond Aron parece virem dar razão aos que consideram reaccionário um pensamento que faz da "sociedade industrial" a sua besta negra: o que faz da tecnocracia, a Leste e a Oeste, uma organização unitária, frente a algo que, simplesmente, também não é a antinomia ou alternativa única e que importa. E basta lembrar aqui o que Raymond Aron disse contra a Revolução de Maio, que estava, no fundo e verdadeiramente (essa sim), contra a tecnocracia, a Leste e a Oeste. No fundo, ele, Raymond Aron, que critica teoricamente a sociedade industrial como um todo, quando chegou, na praxis, a altura de tomar partido contra a tecnocracia, ficou do lado dela e dos que a defenderam sempre com unhas e dentes.
Poderia ter sido da outro modo? Tratando-se de fazer frente e marcar posição totalmente oposta à Ordem Tecnocrática ou Ditadura da Máquina, Raymond Aron tinha fatalmente que alinhar com todos os poderes do Imobilismo que recusariam aderir à Imaginação no Poder). À Heresia feita, pela primeira vez na História, acção colectiva.
PATOLOGIA ADMINISTRATIVA
26 Março/1971 - Tudo se administra: o sexo, a educação, os tempos livres, a liberdade. Tudo se consome e se vende. Tudo se compra.
Ou antes: aquilo que se chama consumir, no mundo capitalista, passa a chamar-se “administrar" no mundo não capitalista.
De como se administra a Educação, leiam-se as publicações do Conselho da Europa, EFTA, Mercado Comum, ver-se-á o que significa, para essas instituições de recuperação capitalista face ao mercado socialista, o capital humano.
Reduzir o homem a capital, não será todo um programa e toda uma ontologia?
E de que mais precisará o critico abjeccionista, para localizar o factor-base da Abjecção?
Porque nos distraímos nós, se o Sistema o que pretende exactamente é distrair-nos?
O ALCANCE DA CRÍTICA ABJECCIONISTA
26 Março 1971 - A incidência exclusiva sobre a sociedade americana e seus cancros, pode vir a desviar a reflexão crítica do seu sentido mais lato e profundo.
Porque a crítica ao status norte-americano, parecendo esgotar toda a crítica (possível) da Abjecção, vai muito além da estrutura capitalista, para atingir toda uma "civilização". Aquela que, por antonomásia (já de si definidora da arrogância que a caracteriza), se classifica a si própria de Civilização.
Assim é que ao escândalo do subdesenvolvimento (a outra face do imperialismo capitalista e do colonialismo, como diria Josué de Castro), à luta de classes, à lei da mais valia, terá de seguir-se, necessariamente, uma crítica mais vasta e mais profunda daquilo que designamos por “vectores da Abjecção" .
Tem-se feito crer que a denúncia da Bomba e da Poluição, da Burocracia e da Ditadura de Estado, da Tortura e da Extrospecção Aberrante, da maratona termonuclear e da maratona olímpica, da maratona super-sónica e da maratona espacial, do Cancro e do Falhanço da Medicina Sintomática, dos Ídolos da Política e da Política dos Ídolos,- tudo coisas não privativas do capitalismo - são manobras de distracção que o imperialismo lança para atear a contra-revolução, para opiar os povos, para atrasar a subversão, etc.
No entanto, há que denunciar também essa manobra de silenciação, que só pretende inibir a verdadeira crítica que é a crítica da Abjecção, indistintamente, quer essa Abjecção se verifique a Leste ou a Oeste.
Embora "engagé" , a única verdadeiramente "engagé" , a crítica da Abjecção distingue-se de todas as críticas ditas "engagés” porque vai além da mera e exclusiva análise económica, avança sobre a dialéctica das classes, pretende abarcar o antropos e não só o homem político ou económico. Eis porque a Revolução será cultural.
E eis porque a perspectiva do crítico abjeccionista é mais vasta e mais ambiciosa.
Quando fazemos incidir demasiado a nossa atenção sobre uma parte dessa Abjecção, embora grande e importante - a da sociedade norte-americana - esquecemos derivantes e variantes de idêntica importância.
Quando a decepção cava mais fundo do que a "sociedade de consumo" (que é, afinal, uma sociedade do desperdício), o crítico é empurrado para a contra-cultura, pejorativamente classificada então como esotérica, ocultista, hermética, mística e quem sabe se metafísica .
Pois. No hermetismo, porém, reside o segredo da luta contra o Regime Homicida, e só passando pela provação da doença (originada na Geral Doença que é em si a chamada Civilização), se encontra a primeira via de iniciação. Quantos anos demora, no entanto, essa iniciação, de que, é claro, tudo nos afasta!
Dividindo, desintegrando, pulverizando, atomizando o Homem, o Sistema leva ganha metade da parada.
Acabar com a propriedade privada, não é tudo, nem é Revolução.
DISTRAIR E ADIAR
26/Março/1971 - O mito do "futuro" - vector da Abjecção - reina a Leste e a Oeste, é capitalista e anti-capitalista, serve, inerente ao Sistema, para distrair e adiar indefinidamente os homens das suas prementes necessidades presentes.
A ciência oficial ainda não conseguiu a "cura do cancro" (o que a demagogia chama de tal)? Pois bem: no futuro, com mais umas pesquisas e umas dotações a laboratórios, para os sábios continuarem à procura do vírus no futuro (quando? qual?) aí teremos a cura sensacional do Século. Entretanto, surgiram mais 20 ou trinta "doenças da civilização" de que também se promete a cura para daí a vinte ou trinta anos e assim sucessivamente.
"É preciso - que diabo: - aguentar um pouco. A ciência, coitada, também não é de ferro e não pode fazer tudo. Lá iremos, lá iremos."
Este alibi do "para amanhã a gente vê” é apenas um caso particular da lei geral a que a Abjecção lança mão para ir justificando eternamente os falhanços .
E - o que é mais espantoso - em nome da dialéctica. Como o homem não é nem pode aspirar ao absoluto, vá-se contentando com o relativozinho que o Sistema lhe dá e amanhã será (um pouco) melhor. Por agora, aguente. Por agora, sofra. Por agora, morra. Por agora, espere.
Sempre adiado, indefinidamente adiado, eis como a cultura da experimentação, da vanglória experimentalista, positivista, cientifísta, praticista, pragmaticista, etc, é a mais idealista, irrealista, teórica, metafísica e abstracta.
Nada se pratica, nada se aplica, nada se experiência e experimenta, efectivamente. Tudo é transferido para depois: "sofre e aguenta" é o grande grito da Civilização da Espera (por isso a do Desespero, também) e o mais que a Civilização do Papel conseguiu de concreto, de positivo, de prático, de real, de não metafísico, de não idealista. De efectivamente materialista, nada: Vivemos cada vez mais num aquário de signos que substituem a realidade.
Eis outro vector da Abjecção: o irrealismo do quotidiano para que tende todo o teor de vida extrospectivo. Acusado de místico, o que realiza a introspecção deve ser travado no seu caminho de aprofundamento, porque caminha para a Subversão que é a Imaginação. Caluniado como místico, metafísico, idealista, anti-progressivo e sei lá que mais, evita-se, tenta evitar-se que nasça um dos mais perigosos inimigos do Sistema: o indivíduo, o visionário, o poeta, o profeta, o homem de imaginação, o verdadeiro iniciado na Contra-Cultura.
Todos os alibis são bons para manter o Sistema nas suas eternizantes prerrogativas.
A CRÍTICA QUE INTERESSA: SITUAR EM VEZ DE ANALISAR
1/Abril/1971 - Se o ponto de arranque é este - cultura e contra-cultura -, se, quando se critica, a raiz do problema é saber como e se a obra, o autor contestam o Sistema, o Padrão, a Ordem onde se inserem, então pouco ou nada adianta análise de obras. Interessa, sim, situar o fenómeno (livro, obra, autor, escola, corrente, etc), quer dizer, saber em que medida ele se insere ou desinsere (servindo ou subvertendo o Sistema) no contexto sócio-político, histórico, cultural.
Daí que, ao falar de crítica, fale sempre de uma filosofia da história, de uma antropologia cultural e, finalmente, de uma mitologia negativa ou de uma axiologia (de uma mitologia positiva).
Quando critico um filme, não analiso o filme mas procuro situá-lo e ao seu autor e à sua estrutura mitológica. Não interessa saber se a obra é esteticamente válida e outras pachochadas da crítica habitual. Não interessa valorar de bom, bonzinho, péssimo, melhor, a obrinha, que nada significa na vastidão do que verdadeiramente importa.
Com um mínimo de realização estética (óbvia, desde logo, a quem ande nisto e tenha aprendido a ler esteticamente uma obra, que a intuição logo descobre, e por isso também não há que analisar) o que importa é pesá-la quanto a mitos, os negativos que serão os defendidos e propostos pelo crítico.
Se a esse situar da obra, não se quiser chamar crítica e se só a análise, fotograma por fotograma o é, pois que seja. Mas é só para dizer que a única coisa que (me) interessa quando falo de filmes, é saber até que ponto vai bulir isso com tudo o que importa: com a história e uma filosofia da história, com uma axiologia geral, com uma ótica, com uma filosofia, com uma teoria do conhecimento e etc Em suma, com o homem. Só. Repito: Só.
O DOM DA UBIQUIDADE
1/Abril/1971 - Parar uma intuição, uma ideia, uma palavra, é matá-los. Desde que se suspenda o movimento do que só em movimento vive, surge a morte.
Por isso quando ouço dizer que há tantos especialistas disto e daquilo, estremeço de horror. O especialista é, forçosamente, um tratador de mortos. Assim como o analista, o que disseca e parte e reparte. Só o movimento é síntese e só a síntese é vida, é viva.
Por isso nunca me prendo, não posso prender-me a nada. Estou hoje lendo Jorge de Lima, mais logo já é sobre a aceleração do processo histórico que tenho de me debruçar, mais adiante é sobre a verdade do zen ou sobre a tecnocracia, ou sobre os massacres de My Lay, ou sobre o valor literário de uma jovem estreia de romancista, ou sobre a deontologia profissional do jornalista, ou sobre se Arnold Toynbee, porque católico, é um historiógrafo reaccionário ou não, ou se Galileo é uma figura exemplar e se há necessidade de fazer uma história de todos os Galileos que, através da história, foram impedidos de trabalhar e desenvolver as suas intuições...
Qual o cérebro, qual o espírito humano que pode, que possa abarcar tudo ao mesmo tempo?
A ubiquidade é talvez o mito mais amado (sem o saber) pelo intelectual, pelo filósofo, pelo que deseja praticar a dialéctica, embora saiba que a dialéctica dificilmente é praticável.
Escrevi um dia algo, nestas páginas polémicas, sobre o "pensar o simultâneo". Sim, como pensar o simultâneo simultaneamente? O (nosso) cérebro é binário, pensa por exclusões consecutivas, não há possibilidade de pensar duas ou mais que duas ideias ao mesmo tempo.
Sim, na polémica onde me meti e me meteram, sei que tenho sido acusado de ignorante, de superficial, de inculto. Sim, claro e de certeza. Já não falando de todos os meus handicaps (tantos, tantos:), já não falando da doença crónica e da depressão nervosa, já não falando do desgosto de tudo o que seja ocidente e cultura ocidental, já não falando de um desgosto existencial ainda mais profundo que o cultural ou político ou patriótico, sei que nunca posso nem podia saber nada de nada: porque não podia parar aí onde cada especialista pára para se cantonar na sua especialidade.
Não admito, a título nenhum, parar num campo restrito, quando a existência, a realidade e sua complexidade, o movimento fervilham à minha volta, dentro, fora, por todo o lado, sempre, ao mesmo tempo.
Como escolher?
Onde parar e me deter?
Que fazer e por onde começar?
O que é supérfluo e o que é fundamental?
No fundo, que especialidade é a minha?
Nos últimos tempos, tem-se-me tornado mais sensível um novo factor de caos: a aceleração histórica.
As coisas avançam em velocidade de vertigem. Se já era humanamente impossível, pela quantidade e pela complexidade, acompanhar o movimento das ideias e abranger e sintetizar a vasta gama de conhecimentos em que a cultura ocidental continua a ser pródiga por subdivisão e análise (onde e quando e para quem a síntese?) temos agora a velocidade a que tudo se processa, a aceleração do processo histórico, precisamente.
Pensei sempre que uma didáctica completamente nova é urgente. Penso agora mais do que nunca. Como sair disto? Como fazer face ao congestionamento de informações, de ideias, de doutrinas, de autores, de ismos, de livros, de escolas, de tendências?
Quem quiser ser honesto, pode ser algo mais do que um eterno aprendiz de tudo em movimento?
AGRESSIVIDADE E VIOLÊNCIA
7/Maio/1971 - Incapaz de desligar de si próprios a agressividade, pretendem os filósofos do Sistema convencer-nos de que a Agressividade é do Homem e não só do homem ocidental.
Por parte dos que têm por missão manter a ordem à força mas também por parte dos outros, a quem incumbiria, em princípio e em teoria que fosse, uma certa humanidade, acabam todos por se render e converter à inevitabilidade da violência.
E chamam reaccionários aos que continuam a defender a não-violência, a possibilidade da não-violência, única, aliás, cientifica.
De facto, como combinam a fatalidade da violência com uma política científica e uma ciência política? Sendo como é a violência um remanescente bárbaro da humanidade pré-científica, como é que podem aderir à violência como solução de problemas, os que dizem resolver tudo cientificamente?
Numa entrevista que me concedeu para “O Século Ilustrado”, em Maio de 1971, o Dr. Almerindo Lessa afirmava: "Toda a Medicina é agressiva".
Tentei rectificar: toda a Medicina Ocidental.
E o entrevistado reincidiu: "Não existe mais nenhuma".
Parece-me que esta evidência - a da violência e da agressividade como inerentes à civilização que designamos ocidental - demonstra muita coisa: - não se trata efectivamente de uma civilização mas de uma barbárie que usurpou aquele titulo;
- se não há outro caminho para a Medicina, então a Medicina deve confessar o seu irremediável falhanço;
- se não há outro caminho para a Medicina, é esse mais um sinal de que a civilização está moribunda e que precisa de outra que a venha substituir;
- a tendência para ignorar outras civilizações está bem patente na resposta (arrogante) de Almerindo Lessa quando diz: "Mas existe mais alguma Medicina, além da ocidental?" (Ora a chatice é que existe mesmo).
- esta monomania de identificar humanidade com homem ocidental, aliada à inevitabilidade da violência no processo humano, se não conduzir à destruição de toda a humanidade, conduzirá, pelo menos, à substituição desta por outra civilização verdadeiramente civilizada: quer dizer, que cientificamente invente a maneira de os homens resolverem os seus problemas sem ser à castanha;
- daí que atitudes de não-violência sejam não só incompreensíveis por parte de políticos, militares, economistas e homens práticos, o que não admira, mas também por parte de outros que até, aparentemente, têm missões mais doces dentro da sociedade;
o médico é um desses exemplos. Esperava-se que o médico, ao menos, oferecesse resistência a essa inevitabilidade ou fatalidade. Que começasse por ele o rastilho da heresia. Que proclamando sempre, em congressos e por aí, um tão doce humanismo, o tentasse efectiva e realmente praticar.
Mas como? Se outra característica da "civilização" da qual não temos maneira de safar-nos, é essa "décalage" de as pessoas a dizerem, teorizarem, gritaram, proclamarem, ensinarem uma coisa (muito bela) e a praticarem outra completamente oposta ou distante (muito feia)?
Aqui e assim se joga, pois, uma "civilização". Que a polícia efectue "prisões em massa de manifestantes pacifistas", não admira. Já admira mais que o médico defenda, intransigentemente, a violência como factor inerente à "civilização", como se esta fosse a única e se identificasse completamente com ela.
Qualquer duro dirá que a flor do pacifismo nunca adiantou nada, e que só a violência resolve, tem resolvido e continuará a resolver coisas.
Quer o duro tenha ou não razão, é pelo menos coerente: nem as grandes imprensas já podem ocultar as "manifestações pacifistas" que se multiplicam e a grande ou luxuosa edição publica livros sobre os hippies. E a literatura não-violenta de Buda, Lao Tse, Ramakhrisna começa a ser, não só uma moda de consumo mas uma violenta necessidade dos violentos ocidentais.
Enfim, a vitória da flor até tem que ser uma vitória diferente, e mal seria se a flor quisesse obter "vitórias" . Que o pacifismo alastra e dá origem aos "underground" todos da Imprensa e do livro, eis do que não há dúvida. Cada qual dentro da sua lógica, a flor aceita tudo: incluindo ser espatifada pela moca. Mas, seja lá pelo que for, até não é isso que está acontecendo pela primeira vez na história da tal civilização ocidental que não dispensa a violência, nem à mocada.■