sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

ENTROPIA 1975

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domingo, 20 de Abril de 2003

[(*) Este texto de Afonso Cautela, foi publicado no caderno «A Idade Solar : Ivan Illich e Wilhelm Reich – Dois Profetas da Utopia Ecológica , Nº 9 da colecção «Mini-Ecologia», Paço de Arcos, 1976 ]

Escrito em 7 de Abril de 1975

Nomes de autores ocorrentes neste texto, neste tempo:

 Herbert Marcuse
 Ivan Illich
 Michel Bosquet
 Raymon Aron
 René Dumont
 Roger Gentis

“A nossa tomada de consciência ecológica é um facto relativamente recente.
" Mas, há 30 anos, Reich denunciava já o carácter fundamentalmente destrutor da nossa civilização, dita do progresso, que nos afasta de maneira perigosa das nossas origens naturais.
" Ensinara-nos - diz ele - a ter medo da nossa animalidade. Temos necessidade de regressar aí, de reencontrar a consciência de si mesmo enquanto animal, uma coisa que perdeu o Homo Normalis, Já ninguém se preocupa com o seu lugar no Universo. Pelo contrário, muitos esquizofrénicos têm uma consciência aguda da sua dependência com o sistema ecológico. Para eles é uma preocupação tão importante como saber se vão comer amanhã. É capital na sua vida"
Roger Gentis, in "Le Sauvage", Janeiro de 1975

I
Se há campo que pode evidenciar, de maneira luminosa, as relações profundas entre Economia e Entropia, entre tudo o que uma Tecnocracia paranóica dividiu, separou, desintegrou, entre Cosmos e Micro-Cosmos, entre Sistemas Vivos e Sistemas Inorgânicos, entra Homem e Ambiente, entre Biosfera e Tecnosfera, esse campo é precisamente o da Energia.
Energia cósmica, energia solar, energia vital, energia psíquica, energia moral, energia física, energia química, bio-energia, eis vários nomes (aflitivamente dispersos e numerosas) para designar talvez uma só realidade, uma Unidade Global, mítica ou metafísica seja ela ou lhe queiram chamar para assim a denegrir.
Não é por acaso que as cosmologias extremo-orientais como o Taoísmo se deverão ter debruçado com tanto afinco sobre essa Energia Única e é quase por acaso que, na cultura ocidental, (fundamentalmente interessada em expoliar o homem de todas as suas energias ou potencialidades originais) vamos encontrar em Wilhelm Reich o mesmo tipo de preocupações.
À custa, porém, de que preço para Reich?
À custa de uma drástica e dramática separação com a cultura ambiente oficial, separação a que a psiquiatria igualmente oficial logo apôs o rótulo de "paranóia da personalidade" levando às ultimas consequências o castigo que uma tal "paranóia"e uma tal independência em relação à loucura oficial obviamente merecia.
De Wilhelm Reich diz Roger Gentis,(anti-psiquiatra e um dos neo-utopistas que mais vivamente têm criticado os sistemas repressivos, anti-ecológicos, paranóicos e aberrantes do desenvolvimentismo) em uma entrevista a "Le Sauvage" (Janeiro de 1975):
" Reich comparava as perturbações atmosféricas ao fenómeno da convulsão do organismo humano durante o orgasmo. O objectivo do seu pensamento era, pois, este: o mesmo fluxo energético banha o conjunto da criação."

II
Há uma pergunta que gostaria de fazer aos partidos políticos: se é verdade que há, neste momento, 250 mil desempregados em Portugal, o que fizeram de imediato esses partidos para mobilizar toda essa energia paralisada, bloqueada, para imediatamente a desbloquear e a pôr a render em qualquer acção útil, organizada, de interesse geral?
Com tanto que há para realizar, porque estão por empregar 250 mil portugueses e por empregar plenamente certamente uns milhões ?
Quando, na sociedade anti-ecológica do Desperdício (também chamada ironicamente de Consumo), pensamos em desperdício dos valores e recursos humanos, compreendemos de que maneira o conceito de emprego e de pleno emprego tem condicionantes ecológicas nítidas, fundamentais, indiscutíveis.
Mas também fica patente e bem claro que emprego não será então apenas acorrentar as pessoas a (novos) postos de trabalho adrede preparados, adrede "fabricados" com o propósito de as ter "em uso", atadas à cadeia de montagem, atrás de uma máquina de escrever, à canga de uma charrua ou à boca ardente de uma forja de acearia.
Pleno emprego implica, quando se tomam em consideração as dimensões ecológicas da praxis humana, a carga psíquica gasta, (a bioenergia despendida), a satisfação do trabalho realizado, as relaçóes harmónicas do trabalho com as outras actividades do trabalhador.
Pleno emprego implica, pois, uma equação entre o carácter, a vocação, as tendências, as potencialidades (bioenergéticas) do trabalhador e o trabalho que executa.
Empregar por empregar está longe de solucionar o problema, e se nenhum partido levanta os aspectos qualitativos (humanos, individuais, biológicos) do pleno emprego, é necessário que o Partido das Alternativas Ecológicas o faça e o levante, desde já, pois para isso existe.
Um dos caminhos que se vislumbram (e não será certamente o único nem o melhor) é a relação estudada por Wilhelm Reich entre os aspectos psíquicos, morais, estéticos e afectivos do trabalho com a sua noção de energia orgónica.
Por outro lado, é evidente de que maneira a energia Ki (assim designada na terminologia taoísta) tem que interferir no processo energético geral.
Na sociedade reaccionária em que ainda estamos - em que a divisão do trabalho domina, porque é essa uma das formas intrínsecas à dominação capitalista - tudo se separa, o manual do intelectual , o engenheiro do homem de letras, o operário do trabalhador rural, o poeta do matemático, o campo da cidade, o individual do colectivo, a teoria da prática, o espírito da matéria, o instinto da razão, etc. .
Tudo se separa na Sociedade de Morte e Desperdício, na Sociedade Anti-Ecológica e Contra-Revolucionária, estando portanto e para um lado a energia humana, a bio-energia, a energia Ki ou energia orgónica, enquanto as Energias que se consideram com direito a esse nome (eléctrica, nuclear, hidráulica, etc.) estão para outro.
Ora o problema da Energia é um só e daí que tivéssemos começado por dizer como a Energia é campo privilegiado para aclarar a Unidade que preside às questões ecológicas.
Energia, Entropia, Economia e Ecologia não podem discutir-se em separado. Diríamos até, exagerando, que é a mesma e única questão.
São, pelo menos, conceitos estreitamente inter-ligados e as interdependências entre eles são os adeptos da Dialéctica Ecológica os únicos que neste momento se encontram empenhados em estudar, mostrar e difundir.
Note-se que Wilhelm Reich - perseguido e encarcerado, vergonhosa e ferozmente atacado pela mafia norte-americana da "Drug and Food Administration",- exemplifica só por si de que modo as sociedades anti-ecológicas do Desperdício e do Biocídio são, também e principalmente, as sociedades que sistematicamente mutilam, atrofiam, perseguem, encarceram, desperdiçam a energia criadora (a bioenergia) que se pode conter num indivíduo como Reich.
Exemplifica como são tratados e aproveitados os Reich e Galileos que a história regista (ou não regista): torrando-os na fogueira.

Nas sociedades regidas pelos "tecnocratas do rendimento", este problema da "energia individual", da imaginação criadora, do capital em ideias que um escritor, um artista, um trabalhador das ideias pode representar, tem hoje acuidade igual à que tinha nas inquisições medievais.
A batalha contra a Estupidez e contra o Farisaísmo, travada agora e também por alguns resistentes ecológicos, é prova de como a luta de classes tem formas e razões que certos partidos desconhecem, e se estende também - na completa ignorância desses partidos - ao campo específico das ideias, da imaginação criadora e da sensibilidade, da energia criado e da bioenergia.
Como dizia Fréderique Lebelley em "Le Sauvage", "vivemos hoje o que se pode chamar uma crise de energia humana: a civilização industrial atrofia o nosso potencial energético - poluição, condições e ritmos de vida - e utiliza-o para produzir mercadorias" que depois temos de consumir.

V
É de notar, também, nesta questão do pleno emprego, de que modo o desemprego (tal como o a inflação, a recessão, a alta dos preços, a baixa do nível de vida, o atraso dos salários em relação àquela alta, etc.) é fenómeno intrínseco ao capitalismo, não tendo o dilema/chantagem da "Poluição ou Desemprego", "Industrialização ou Subdesenvolvimento" mais consistência do que qualquer outro sofisma, do que qualquer outra mentira com que o capitalismo se impõe na exploração e manipulação do homem pelo homem.
Sofisma tantas vezes ouvido para combater a estratégia ecológica e a sua exigência de selectivar a industrialização, o dilema "Poluição ou Desemprego", apresenta-se como fraude óbvia à luz de algumas razões apresentadas a seguir:

a) Dentro do capitalismo, o desemprego é crónico, não só por razões estruturais e conjunturais mas por razões de estratégia política inerentes à exploração capitalista: com mais ou menos fábricas, mais ou menos postos do trabalho, mais ou monos poluição, mais ou menos industrialização, as crises cíclicas de desemprego são "indispensáveis" à exploração capitalista, que politicamente encontra no desemprego um dos seus melhores aliados; criando o desemprego a insegurança, é esta insegurança que permite ver no patrão empregador potencial um permanente messias do trabalhador, um Pater Nostru, um Salvador que vem dar-nos aquilo que não temos o de que totalmente dependemos para subsistir;

b) Numa Economia Planificada, o desemprego não pode continuar a existir sob pena de contradição interna mortal: e se existe, só poda ser por motivos também de estratégia política inconfessável e que resta saber a quem servem;

c) Encarado o Produto Nacional Bruto, o problema que se põe numa Economia planificada é redistribuir equanimemente não só os rendimentos mas as ocupações, as horas de trabalho, os leques salariais e os esforços despendidos ou bio-energia gasta;
Contraditório será, pois, que numa Economia planificada sejam pedidos aos trabalhadores mais sacrifícios, mais horas, mais surménage, mais bioenergia;
É evidente também que uma população trabalhadora é convidada a dar esse suplemento de esforço e sacrifícios em função do um modelo de crescimento, de um padrão do desenvolvimento, de uma política de produção e de consumo que é concebida e traçada nas suas costas; haveria que perguntar, primeiro, às populações se querem dar sacrifícios para terem mais alguns gadgets em casa, ou se preferem ter menos gadgets e supérfluos, mas mais horas livres para ler, estudar, sonhar, brincar com os filhos, apanhar sol, ver um bom filme, ir à praia ou ao campo, etc.
É evidente de que maneira o modelo do crescimento se tem que subordinar a um modelo de vida que terá de ser, necessária e obviamente, ecologicamente definido; porque é atributo especifico da teoria ecológica definir os valores que apontam para a vida e para a qualidade de vida;

e) É urgente ainda desmistificar a correlação feita por tecnocratas de esquerda e da direita entre desenvolvimento económico e satisfação ou felicidade individual, (qualidade de vida): há que atentar no carácter deliberado de “complicabilidade" que têm os Macro-sistemas da Economia do Desperdício, para justificar, com essa tremenda “complicabilidade" a que chamam "complexidade", não só a divisão e hiper-divisão do trabalho e o domínio do especialismo (hiper-especialismo) tocnocrático - a cada um sua especialidade, a responsabilidade para ninguém", como já demonstrei em outro ensaio inédito - como ainda a intérmina escravidão do trabalhador ao posto de trabalho, dando o seu contributo individual para desenredar a meada (tecnocrática) que é cada vez mais e por natureza, por definição, enredada.
Dado o seu gigantismo congénito, os Macro-Sistemas “complicam-se a si mesmos" por inércia intrínseca mas também por estratégia de exploração, para justificar o consumo de produtos cada vez mais sofisticados, produtos que se vão fabricando para, por seu turno, “simplificar” o que outros anteriormente deliberadamente complicaram;

f) O computador é exemplo da fraude anterior: diz-se que vem simplificar o trabalho que o cérebro humano, coitado, já não poderia realizar. Vem, portanto, "libertar" (sic) o trabalhador.
Sofisma, mentira, descarada e mistificante fraude esta.
Se há hoje contas complicadíssimas a resolver, isso deve-se apenas às macrocefalias e concentrações empresariais ou urbanísticas a que o sistema conduz; e o computador, neste contexto, não contribuiu em nada para a felicidade ou libertação humana, porque apenas contribuiu para reforçar a sua escravidão, para estofar e dar aparência de conforto, de suavidade ao sistema repressivo em si mesmo.
O que um homem independente deve afirmar e defender é que o computador não faz falta porque não fazem falta as complicadas contas que o sistema inventou. Ou se as inventou, que as resolva ele sem apelar ao sacrifício e às horas extraordinárias do trabalhador.
Revolucionar é simplificar - incluindo as contas.
Simplificar é descentralizar, é substituir por micro-sistemas alternativos, vivos, dimensionados ao homem e aos ritmos biológicos, os Macro-sistemas anti-ecológicos, anti-biológicos, anti-humanos.

VI
É Roger Gentis que, na já citada entrevista a Le Sauvage (Janeiro de 1975) afirma:
"De momento, ao ter do escolher entre dois mitos - o de um esquizofrénico que elabora um mito cósmico e o mito do progresso e da expansão económica , admitidos pela nossa sociedade - o primeiro parece-me mais razoável, menos irracional, pois ele permite viver melhor e de maneira mais intensa".
Qualquer pessoa inteligente - e que ainda não esteja vendida à grande exploração - terá de pensar da mesma maneira razoável.

VII
Está o autor suficientemente alertado para as mistificantes "amálgamas" que os adversários da Política Ecológica estão sempre prontos a inventar para lançar sobre a guerrilha ecológica o descrédito e o anátema de reaccionária.
Sabe-se de que maneira, por exemplo, a crítica aos sistemas anti-ecológicos, Biocidas e Ecocidas, Tecnocráticos e Biocráticos, pode ser assimilada com a crítica reaccionária feita por senhores como Raymond Aron - ele fala de "sociedade industrial" - ou como Herbert Marcuse - ele fala do "homem unidimensional" da mesma sociedade industrial.

Há muitas maneiras de matar pulgas e o percevejo tecnoburocrático, o piolho tecno-industrial criticado por Raymon Aron não é o mesmo (nem criticado da mesma maneira) que o criticado por Illich, Dumont, Gentis, Reich ou Michel Bosquet (e só para citar alguns que criticam o “industriocratismo" da perspectiva ecológica).
No momento partidário presente, aliás, assiste-se a uma amálgama idêntica: partidos de Esquerda criticam os partidos social-reformistas, mas a sua crítica não é evidentemente a mesma que lhe fazem os partidos da direita e extrema-direita; embora aparentemente o alvo seja o mesmo...
Que a lição sirva de exemplo, que o exemplo sirva de lição.
Seja Aron ou seja Marcuse, não é por assimilar o primeiro à reacção e o segundo ao ultra-esquerdismo contra-revolucionário que se resolve o problema fulcral por eles também colocado: o trabalho alienante em geral, o trabalho automático em cadeia, em particular.
Este questão - a da alienação no trabalho e de que modo a Bio-energia é canalizada para supérfluos, desperdícios, gastos e usos que nada têm a ver com a felicidade humana - com a Economia Humana - dos que despendom essa energia - eis a questão que, queiram ou não os mistificadores, a Revolução Ecológica pôs, põe e há-de continuar a pôr como questão central da Revolução Cultural em Marcha.


(1) - Como ficou exemplificado nas reportagens realizadas pelo autor (e publicadas pelo jornal «O Século», em 16-1-75 e 30-12-74), Maceirinha e Praia do Ribatejo são dois casos portugueses bastante significativos do "alto" preço que os povos dessas regiões são obrigados a pagar pela "vantagem" de terem empregos.
São dois exemplos da chantagem "Poluição ou Desemprego", "Industrialização ou Subdesenvolvimento", que é das mais vergonhosas que a exploração capitalista impõe, mas nem sempre desmistificada a tempo e desmascarada até às últimas consequências pelos críticos habituais do capitalismo, que na industrialização acelerada e indiscriminada põem também suas únicas esperanças de pleno emprego (a que antes se deverá chamar plena escravização).
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(*) Este texto de Afonso Cautela, foi publicado no caderno «A Idade Solar: Ivan Illich e Wilhelm Reich – Dois Profetas da Utopia Ecológica, Nº 9 da colecção «Mini-Ecologia», Paço de Arcos, 1976

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1-2 - 90-09-04 – ls > leituras do afonso -entropia>
sábado, 12 de Abril de 2003

RAÍZES DA DECADÊNCIA: O DESESPERO DOS HEDONISTAS(*)

[(**) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «A Capital», «Livros na Mão», 30-10-1990+-]

4-9-1990

A palavra «entropia» ainda não estava na moda quando Miguel de Unamuno escreveu «Del Sentimiento Tragico de la Vida», que agora aparece em nova tradução portuguesa(*). Em 1953, a editora Educação Nacional, do Porto, publicara a versão de Cruz Malpique, mais literal e académica do que esta que o Círculo de Leitores agora apresentou.
Para o filósofo de Salamanca - também romancista, poeta e dramaturgo - a condição humana já era entendida como maldição e prova, no que andou muito perto dos «pessimistas» como Schopenhauer, Nietzsche, Leopardi ou Kierkegaard e também de muitos que se viram englobados no rótulo de «existencialistas».
Mas de uns e outros ele se demarcou, pela intuição central que o título desta obra particularmente expressa: o «sentido trágico da vida» seria o sentido entrópico da vida que regula todos os sistemas morais do Ocidente, baseados num cego, obstinado e estúpido hedonismo. Essa seria, no Ocidente, a nossa «doença», que levámos séculos a difundir pelo Mundo, como a maior pandemia da História. Perdemos as raízes da sabedoria, que consistia exactamente em saber que o homem é energia e que toda a ciência se deverá resumir, afinal, em conhecer a arte de administrar essa energia.
A nossa «doença» chama-se «ignorância» e daí, dessa ignorância, o sentido trágico e cego do caminhar por este mundo. Ler Miguel de Unamuno e o seu diagóstico, é ler os sintomas exacerbados da Doença que se reconhece, confessa mas não ultrapassa, e isso ainda por preconceito «cultural».
Fala Unamuno dos «Upanishads» mas o seu despeito irritado logo se revela nesta acusação ao monismo das cosmologias extremo-orientais que da Energia sabiam como ninguém mais voltou a saber: «aquilo a que eu aspiro, não é submergir-me no grande todo, na Matéria, ou na Força, infinitas e eternas, ou em Deus. Aquilo a que eu aspiro não é a ser possuído por Deus, mas a possuí-lo, a fazer-me Deus, sem deixar de ser o eu que vos digo ser neste momento. »
A «doença» ocidental, a que Unamuno chama «tragédia», um tanto exageradamente, caracteriza-se por criar essa espécie de catarata ideológica que impede de ver tudo quanto não seja e não ajude ao progresso da própria doença.
Para lá do interesse quase mórbido que a sua fascinante leitura suscita, especialmente aos que gostem de romances policiais, para lá do muito que se aprende e sofre neste testemuno humano de beleza inigualável que é o livro de Unamuno, importa ao militante da Heresia detectar algumas passagens francamente demonstrativas do apego ao erro e da rejeição apriorística das raras janelas terapêuticas que se podem abrir.
Pobres filósofos como este «trágico» Unamuno que, na imensa noite e na imensa doença da «civilização» ocidental, marraram contra as paredes do cárcere, não vendo que eram de vidro..., muitas vezes tendo na mão o amuleto - a intuição central da entropia cósmica - capaz de exorcismar angústias, revoltas, desesperos, mas sem o saber utilizar. Mais: alguns deles, como Unamuno, tiveram o amuleto na mão e deitaram-no fora.

Os filósofos ditos «pessimistas» e, em séculos mais recentes, os «existencialistas», com seus gritos, aflições, insónias e calafrios, são bem a imagem, o sintoma de uma «doença» cada dia mais incurável e de que a Poluição e suas sequelas é apenas um dos sintomas mais ridículos e insignificantes. Mas foi ela, a Poluição, que obrigou algguém a descobrir a palavra Entropia. Valha-nos isso.
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(*) «O Sentimento Trágico da Vida», Miguel de Unamuno, Ed. Círculo de Leitores
(**) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «A Capital», «Livros na Mão», 30-10-1990