quarta-feira, 30 de maio de 2007

HÁ JÁ 16 ANOS

agosto19>diario91> -Eu-espectador

19/Agosto/1991

A falta que faz Deus, meu deus!, a falta que faz a religião! Como pode um ser humano carregar sózinho tamanho pesadelo como é a existência! Como pode alguém matar alguém e continuar a viver? O que se passa na alma de um homem assassino? É preciso ter compaixão de quem praticou violência, crime, tortura, de quem feriu outra energia, de quem magoou, de quem provocou sofrimento, de quem odiou, de quem queimou, de quem destruiu. É preciso ter pena de uma alma que, por força física do equilíbrio natural, pagará as penas eternas do inferno. É isso a eternidade! O cinema incita à violência, a sociedade incita à violência, a violência incita à violência. Círculo infernal! Como sair deste círculo? Como parar, suspender a vida, para viver a morte? Como se abre um parêntesis na eternidade do sofrimento e do horror?
(Foi escrito quando via «Um Longo Verão», baseado no livro «The Hamlet» de William Faulkner)
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19/Agosto/1990

Carta da mortal criatura (do diligente trabalhador) ao senhor Deus Todo Poderoso

Grato Te estou, Senhor Todo Poderoso, dono do Céu e da Terra, por todos os benefícios recebidos, hoje, ontem e sempre, pelas inúmeras bênçãos derramadas sobre a minha humilde cabeça e que da tua omnipresente e omnisciente vontade tive a sublime graça de usufruir.
Grato, Senhor de todos os tempos e de todos os lugares, me sinto eternamente pelas atenções de que rodeastes a minha tão baixa, rasteira e humílima pessoa, rojada a Teus pés perfumados de sândalo e mirra, olhos míopes postos na tua infinita e clara Bondade que não tem comparação em qualquer outra bondade do Orbe Terrestre.
Grato sou e serei , Senhor de todos os mares e oceanos e lagos e rios e ribeiros, afluentes e subafluentes, grato por não ter transpirado de Ti, Pulmão do Universo, do teu Adorado Corpo Místico e do divino Espírito Santo que materialmente incarnas, o mínimo sinal de corrupção, mentira, piedade, perseguição, tortura, encarniçamento terapêutico(+), hipocrisia, dualismo, ambiguidade, roubo, anestesia geral, inicuidade, mau cheiro, androginia; grato por ter escapado com vida aos mil e um atentados, alçapões, armadilhas das forças do mal que sobre mim, como bênçãos, se têm diariamente abatido;grato por a inflação ter subido apenas 12 por cento ao (meio) ano, quando era suposto e os profetas previam que subisse onze e meio; grato por haver ainda dois milímetros de costa portuguesa onde tomar banho sem risco de hepatite B, por haver ainda dois milímetros de solo não ardido na terra bendita de Nossa Senhora que é a Terra Bendita de Portugal; por estarmos destinados, como povo, a cometimentos de grande vulto; pela predestinação de ti emanada que permite ao meu vizinho caminhar só com uma perna quando podia perfeitamente caminhar sem nenhuma, se tivesse perdido as duas no atropelamento providencial e municipal nas Avenidas Novas; pela comiseração dos senhores que permitem a 50% da população viver em bairros-da-lata, quando podiam perfeitamente dormir dabaixo das pontes; pela defesa maternal que o Ministério da Saúde empreende dos nossos interesses e apetites sexuais, gastando num mês em propaganda a preservativos, pró menino e prá menina, a verba oficial destinada a um ano de propaganda com educação alimentar, descontada a que se destina a papel higiénico para os lavabos do Ministério.
Grato te estou, Senhor de todas as plenitudes, Mago de todos os desejos, Feiticeiro de todas as orgias, grato te estou e sempre te ficarei, pelos séculos dos séculos, eras atrás de eras, porque ainda não foi hoje que morri de tédio, minado, mirrado de stress, esgotamento nervoso, calamidade privada, depressão endógena, estenuanço puro e simples, excesso de trabalho, abuso de teína, cafeína e carência de mais coisas em ina, porque ainda não foi hoje que me suicidei, contrariando todas as previsões e futurologias do meu astrólogo favorito, ainda não foi hoje que arranjei coragem e tesão para me suicidar; porque tudo corre sobre rodas, porque nunca a fome foi tão sinceramente fome, o terror tão crua e cruelmente terror, porque nunca a paz armada esteve tão bem armada até aos dentes, porque nunca desanuviamentos e «guerra fria» se envolveram connosco em cópula tão feliz, contraditória e explosiva.
Obrigado, Senhor das Águias e Falcões, Senhor de todos os animais nobres e altaneiros, Senhor de todss as altitudes e vertigens, abismos e planícies, florestas tropicais e estrelas candentes, almas, cânticos, púlpitos, anémonas, virtudes, pérolas, ancinhos, cadeias, morbos, searas, entidades alienígenas, vírus mutantes, embriagamentos por alucinogénicos, obrigado, Senhor, pelos desportos de Inverno na neve da Serra da Estrela, pelos desportos de Verão, pelos desportos de Outono, mas, principalmente, pelos desportos de Primavera, estação dos suicídios, fase da lua propícia à nostalgia dos estrangulamentos, capítulo solar de um romance de cobras e ábsides, obrigado pela ternura dos pássaros em flor, pelas flores rodeadas de pássaros, pela esperança dos colibris e das anémonas, dos pobres, humilhados e ofendidos em melhores dias, pela algazarra das mulheres na lota da Ribeira, pelo superior conceito de Tecnocracia reinante, pela religião dos narcodólares, dos petrodólares, dos sidodólares, (+ compostos de dólares).
Obrigado, Senhor de todos os exércitos, pela guerra fria e quente, pelas radiações pacíficas dos computadores, pelos terremotos suplementares que foram acrescentados pelos militares aos que tinhas programado desde o princípio dos tempos; obrigado pela autorização que nos concedestes, miseráveis propagandistas do Ócio, das Tenebrosas trevas, dos arrestos sem razão, das canalhices sem remissão, das algemas sem chave nem fechadura, de mais um dia, uma hora, um minuto, um segundo de vida desta vida de plenitude num mundo conturbado como este em que vivemos, vale de lágrimas com poucas zonas verdes, sítio de calor e febres palustres, inolvidável cansaço de areias e areias sem fim.
Obrigado, Senhor da História e do destino, por todos os D. Sebastião que se perderam em trágicas empresas de profética brandura.
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