segunda-feira, 16 de março de 2009

SCHUMACHER 1981

1-3 domingo, 19 de Janeiro de 2003- schuma-2-ls>
segunda-feira, 30 de dezembro de 2002-scan

«THE SMALL IS BEAUTIFUL» (*)

[«Crónica do Planeta Terra», «A Capital», 18–8-1981]

Acaba de sair em tradução portuguesa a obra mais conhecida e discutida do célebre economista alemão radicado na Grã Bretanha, Ernst Frederich Schumacher.
«Small is Beautiful» - título original do famoso livro - tornou-se, em todo o mundo, desde a sua publicação em 1973, sinónimo de economia e tecnologia intermédia, tese fundamental no pensamento de Schumacher.
Este «estudo de Economia em que as pessoas também contam» representa uma crítica tanto mais pertinente ao sistema económico até hoje vigente a Leste e a Oeste, quando o seu autor é um especialista eminente dessa ciência e desse sistema.
Schumacher, com efeito, tem uma brilhante carreira de economista.
Refugiado em Inglaterra, ele voltou à vida académica como investigador científico em Oxford, sendo simultaneamente conselheiro económico do Governo britânico para a reconstrução da Alemanha.
Durante as décadas de 50 e 60 documentou sobre problemas do desenvolvimento numerosos governos.
Fundador do Intermediate Technology Development Group (Grupo para o Desenvolvimento de Tecnologia Intermédia), foi durante anos conselheiro económico do Departamento Nacional de Carvão, do Reino Unido e conselheiro económico do Governo da Birmânia em 1962 e da Índia em 1966.
As críticas que desfere contra a economia da exploração hoje vigente, quer no bloco capitalista quer no bloco socialista, baseiam-se portanto numa longa carreira de investigador, professor e economista político.
Schumacher morreu em 1977, dias antes da publicação do seu livro «Guide for the Perplexed». Mas não morreram as suas teses, difundidas hoje por todo o mundo onde começa a compreender-se que a ecologia e o ecodesenvolvimento são inseparáveis na luta dos povos e dos explorados contra o imperialismo industrial.

O DESASTRE DA MACROCEFALIA

Embora a macrocefalia urbana seja em si mesma o maior atentado à qualidade de vida das populações, agrada no entanto à es-querda e à direita que, nos seus programas de urbanismo e habitação, prometam defender essa qualidade de vida dos cidadãos.
A macrocefalia e a superconcentração industrial nas cinturas urbanas - embora causem doenças orgânicas e sociais as mais diversas - trazem enormes vantagens para as estratégias partidárias quer da esquerda, quer da direita. Para os organismos políticos que controlam os sindicatos, a concentração é vantajosa porque facilita a unidade de luta e da contra-repressão. As importantes greves dos metalúrgicos nos arrabaldes de São Paulo, magalópolis tentacular,
símbolo do concentracionário urbano, mostram de que maneira a grande cidade facilita a unidade dos trabalhadores e como pode portanto ter vantagens para uma estratégia grevista dos sindicatos.
Para a polícia, o Estado e as multinacionais, por outro lado, (quer dizer, a direita), a macrocefalia é ideal, pois todas essas forças da direita reprimem melhor o trabalhador em grandes concentrados do que se estivessem dispersos.
Com grande dose de objectividade, portanto, poderá dizer-se que a macrocefalia serve a direita e a esquerda com igual proveito.
De onde, portanto, não se vislumbra que possa vir da esquerda ou da direita, qualquer política urbana (e de desenvolvimento global) alternativa à macrocefalia - uma das principais causas da crise ecológica que o mundo vive, como São Paulo ilustra.
Da nada serve dizer que a macrocefalia de Lisboa provoca não só a morte do estuário do Tejo mas muitos outros males de que este País padece. Enquanto essa macrocefalia interessar, na perspectiva do concentracionário industrial, os partidos de esquerda tanto como os partidos de direita, Lisboa continuará a crescer, com a UNESCO, benfeitora, a dizer que nos vem estudar o estuário.
O exemplo, aliás, repete-se com o mesmo vigor no caso da concentração agrária que é o latifúndio: tem-se visto como ele é particularmente grato aos amigos e inimigos da reforma agrária (sic). Como alternativa ao latifúndio, querido à esquerda e à direita, a revolução ecológica dos campos espera.
Porque também neste caso - o latifúndio - o gigantismo é, ecologicamente falando, a ruína e o desastre.
Os dois exemplos encorajam uma generalização: o gigantismo é sempre antiecológico e só o que estiver à escala humana serve o homem, tudo o que for além disso o destruirá.
«The Smatl ia Beautiful» - foi a paráfrase que o economista Schumacher encontrou para definir um dos vectores fundamentais da política ecológica.
Sendo o gigantismo - quer a macrocefalia urbana, quer o latifúndio, quer o complexo megalómano do tipo Sines, quer o empreen-dimento gigantesco do tipo Alqueva - inerente aos imperialismos que planificam a pilhagem dos recursos naturais da Terra - e dos países, é natural que os representantes, nesses países, desses imperialismo, à esquerda e à direita, sirvam os seus donos e senhores, lançando o «slogan» «The Large is Beautiful».

QUANDO O (PROMETIDO) CONFORTO DA CIDADE SE TRANSFORMA EM INCÓMODO PESADELO

Também não é por falta de informação que a auto-suficiência se encontra impossibilitada. Hoje tudo está praticamente investigado. E se nos dizem que não está, é essa mais uma das habituais mentiras com que o sistema pretende travar a marcha inevitável dos homens para a libertação eco-alternativa.
Para que o «regresso ao campo» encontre a sua principal justificação, há que não perder de vista este facto dominante: o famigerado conforto, o emprego, o posto de trabalho, o bem-estar que se prometia ao rural quando o aliciaram para a cidade, é cada vez mais uma fraude maior.
O que nós temos mais certo, suspenso como um cutelo sobre as nossas vidas, é a mais atroz da incomodidade, o maior descon-forto e o mais vergonhoso dos sofrimentos, quando, por exemplo, a torneira dos combustíveis voltar a fechar como fechou em 1973.
Na total dependência de uma fonte energética que de repente termina, como iremos pagar uma bilha de gás? Mil, dois mil escudos? E haverá bilhas de gás para comprar, mesmo a preço de ouro? Já se viu o ritmo a que o preço cresceu desde 1973? Pode calcular-se o ritmo em que vai crescer?
Porque nos continuam a embalar com histórias de fadas?
Este é apenas um facto para servir de símbolo a tudo o mais que nos conta a mitologia da felicidade pregada pela sociedade de consumo e seus anúncios.
Quando a ameaça desse conforto - a água quente – se transformar num pesadelo (devido ao custo do gás), onde está afinal e teoria do conforto que nos tem sido prometido a troco da «dura vida dos campos»?
Mantidos na prisão da cidade, só já tarde compreenderemos o logro e as mentiras da mitologia publicitária: conforto, afinal, onde estás tu?
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(*) Este texto de Afonso Cautela, foi publicado em «Crónica do Planeta Terra», «A Capital», 18(16?)–8-1981
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UMA HERESIA DE F. SCHUMACHER OS DEUSES DA ECONOMIA (*)

[CPT, in «A Capital», 8-8-1987] - Um novo-riquismo, perceptível a olho nu, tem grassado desde há uns tempos no discurso alegadamente ecológico ou meramente ambiental. Todos descobriram, de repente, a pól-vora. E o ambiente, a dois passos da uma, é bestial, grande amigo, um gajo porreiro, principalmente se der subsídios e tiver também mecenato.
Mas toda esta euforia pró--ambientalista de conjuntura não impede que o discurso economicista, do cifrão e dos per capita que já existia antes, que durante o salazarismo ocupou corporativamente todo o nosso espaço mental, sem falar obviamente do económico, esteja ainda de boa saúde e com grande vigor.
O nacional-ambientalismo, embora um tanto grotesco, não perturba os pan-conomicistas, que já não sabem aprender discurso diferente daquele que beberam no leite maternal, como é patente nos discursadores dos partidos, todos convencidos de que nos convencem.
Ecologismo que não se fique pela rama, porém, ecologismo com o mínimo de autenticidade e coerência, é claramente perturbante, já que traz, para a plena luz pública, o que estava condenado a permanecer secreto para o resto da eternidade: a sífilis do sistema, as «des-economias externas-», como às vezes lhe chamam. Os direitos ecológicos das pessoas, esses, são hoje tabu como eram no tempo do Marquês de Pombal.
O grande escândalo das correntes ecologistas autênticas, não é a denúncia das poluições e dos poluentes, com um discur-so igualmente poluído, porque sintomatológico: o escândalo de um realismo ecológico coerente, independente, com princípio, meio e fim, é ir à causa, às raí-zes e não aos efeitos (poluições) do macrossistema que vive de nos ir assassinando.
O grande escândalo do realismo ecologista, defendido com unhas e dentes por meia dúzia de franco-atiradores clandestinos, é pura e simplesmente que o homem concreto, com senti-mentos, pele, nervos, sofrimentos, riscos, stress, angústias, etc., irrompe na praça pública a dizer que é mais importante do que cifrões, dólares, produtividade, bolsas, planos quinque-nais, dólares, produtividade, economia de mercado, colectivização socialista, etc.
Esta é a lição (o escândalo) que os viciados discursos economicistas de todas as tendências, desde a direita às esquerdas, ainda não aprenderam nem aprenderão tão cedo, mesmo que a casa (da economia) já esteja outra vez a arder com o renovo da chamada crise petrolífera.
Dizem-nos então, por reacção reflexa, que sem economia e sem petróleo, a sociedade se desmorona. E até talvez tenham razão. Mas por muito indispensável que a economia (do desperdício) se tivesse feito, por uma natural esperteza dos economistas e sua própria sobrevivência como classe, o que pisa hoje o risco vermelho do escândalo é a Ecologia Humana, porque põe as pessoas no lugar da Primeira Prioridade, no lugar onde têm estado e continuam a estar os cifrões e as metas desenvolvimentistas.

UMA QUESTÃO DE VALORES

Dizer que a Economia é uma questão religiosa parece à pri-meira vista uma provocação. Uma blague de mau gosto.
Mas é talvez a afirmação mais rigorosa que hoje se pode fazer num tempo de acelerado apodrecimento da História.
O economista E. Frederic Schumacher, que alcançou os postos mais elevados na hierar-quia tecnocrática ocidental, teve o arrojo de propor, no seu livro intitulado Small is Beautiful,(1) a economia budista como doutrina modelar de desenvolvimento.
A sua tese tem, entre outras vantagens, a de colocar a ques-tão do crescimento económico no seu lugar exacto, quer dizer, onde nunca os economistas di-tos ateus tiveram coragem de a colocar: no campo dos valores, dos princípios, da ética.
A maior religião do mundo e que conta com maior número de adeptos é hoje a religião do crescimento industrial. Basta ver quantos nomes se têm dado a este deus do pós-guerra que é o desenvolvimento. Progresso, bem-estar, felicidade nacional bruta, produto nacional bruto, metas do progresso, qualidade de vida, industrialização acelerada, tanto nome só para um deus.
Os mitos que o mito do pro-gresso fez proliferar e alimenta, os subdeuses que propõe à adoração das massas, os into-cáveis que governam as suas igrejas, as igrejas que, como cogumelos, se reproduzem por todos os LNEC do mundo, com seus sacerdotes, rituais, hóstias de enfiar pela boca, suas polícias políticas chamadas cientistas, confessores chamados psiquiatras, fiscais chamados técnicos de informática, inquisido-res chamados engenheiros nucleares, que grande família de grandes patriotas!
O que adoradores e padres-curas do deus-economia, do deus-progresso, do deus-crescimento, do deus-etc., não têm, entretanto, coragem de confessar, por um fenómeno de recalcamento semelhante ao complexo de Édipo, eis que o ecologismo o aponta como o menino que grita que o rei vai nu, porque efectivamente o rei vai em pêlo.
O ecologismo faz da Economia uma questão moral. Fala de moral energética, igual a moral ecológica. Diz que o problema da fome não é de crescimento demográfico como repe-tem os maltusianos, mas um problema de decência. Enquanto um carnívoro ocidental comer por dia, em suínos tuberculosos, o que daria, em cereais, para alimentar 100 crianças esfomeadas do Terceiro Mundo, há aqui um problema de vergonha na cara.
Revolução ecológica terá de ser uma revolução ética, antes, durante e depois. Se quiserem, uma revolução religiosa.
Não sou eu que o digo. Têm-no dito alguns pilares da Mitologia do Crescimento, na hora da verdade em que batem com a mão no peito e gritam: «Mea culpa, mea grande culpa. Per-doai-me Senhor, que errei na minha estupidez tecnocrática.»
Assim berraram Sicco Mansholt, o já citado Schumacher, filósofos como Garaudy, René Dumont, Henri Lefèbvre, Edgar Morin e outros menos conhecidos, porque sussurraram as coisas mais em segredo para a galeria não ouvir. Porque ai daquele que, herege, se baldar da religião do crescimento. Nunca mais tem toca a que se aninhar.
Se o renascimento ecológico do planeta está hoje a realizar--se através de comunidades di-tas laicas, também é um facto que as mais avançadas e dura-douras, as mais enraizadas e radicais, são claramente de confissão religiosa, Nyima Dzong, nos Alpes, a Comunida-de da L’ Arche fundada em França por Lanza dal Vasto, a cidade de Auroville, na Índia, fazem-nos compreender melhor porque é a Economia uma questão (de) Moral.
A ciência vai a reboque e descobre o que já estava des-coberto desde o princípio do Mundo pela Sabedora Primordial Viva, a que alguns chamam Yoga. Tudo é energia. Tudo se liga a tudo. Na ordem do universo tudo é interdependente. A energia somos Nós. Nada se faz que não se pague.
Estes e outros aforismos de moral energética que se podem ler, em lista, num dos breviários do ecologista, provam que a ciência chega finalmente às banalidades de base que estavam inscritas no coração humano até ao momento em que a pulhice ocidental, nomeadamente europeia e nomeadamente lusitana, corrompeu quase todas as grandes culturas do mundo.
Por exemplo: o famoso controle cibernético é, afinal, a auto-regulação dos sistemas vi-vos, a que eles chamam um palavrão: homeostase. E por aí fora.
Quando os políticos se metem a legislar sobre questões morais, então, é um espe-ctáculo chocante: ver-se como eles falam de objecção de consciência, é de fazer corar o diabo mais pornográfico.
Tentando mostrar que a questão ecológica é uma ques-tão de vergonha na cara da gente que a tiver, andaremos nós a dizer, até que nos ouçam.

(1) Ernst Friedrich Schumacher, «Smal is Beautiful (Um Estudo de Economia em que as pessoas também contam)», Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1980
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(*) Este texto de Afonso Cautela, apesar de 5 estrelas, foi publicado em «Crónica do Planeta Terra», jornal «A Capital», 8-8-1987

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segunda-feira, 30 de Dezembro de 2002-scan

«SMALL IS BEAUTIFUL»: A LÓGICA ABSURDA DO CRESCIMENTO(*)

[revista «Come e Cala», em 3–12-1981 ] - As grandes concentrações urbanas, levando à fatalidade do monopólio, parecem ser uma componente imprescindível ao sistema imperial-monopolista, à esquerda, à direita e ao centro.

O sentido monopolista da história europeia nos últimos 150 anos explica:

- a tendência concentracionária das cidades;

- a mitificação da indústria fabril enquanto os campos e a agricultura se cobrem de desprezo.

O EXEMPLO MULTISSECULAR DAS CISTERNAS

No campo da água, essa tendência monopolista avassaladora compreende-se claramente através de exemplos brutalmente flagrantes: as cisternas, que foram, desde os árabes, um dos processos mais expeditos e ecológicos de armazenar água, insensivelmente (?) caindo em desuso à medida que a indústria consciencializava a sua própria ideologia de domínio e destruição.

A cisterna permitia a diversidade e a proliferação, portanto a independência e as alternativas individuais ao monopólio (no caso, o das Águas).

A cisterna poupava a água dos lençóis subterrâneos.

A cisterna foi acusada de não conservar a água em bom estado - que se deterioraria devido à falta de luminosidade - mas muitos sabiam que o «sistema veneziano» impedia esse inconveniente.

A cisterna passa à história.

E hoje, a sua versão moderna - a pequena barragem de terra batida - é igualmente omissa nos planos nacionais e regionais de desenvolvimento.

Já ouvimos um engenheiro acusar estas barragens de «criar muitos mosquitos», inconveniente ecológico de monta que evidentemente as desaconselha...

As pequenas e médias cisternas, tal como as pequenas e médias barragens, tal como as pequenas e médias cidades, tal como os pequenos e médios agricultores, comerciantes, produtores, não interessam ao sistema imperialista que sabe quanto ganha ao concentrar.

Nem que seja à custa da destruição ecológica da Terra.

Como provam as distâncias cada vez maiores - com furos artesianos cada vez mais fundos - a que se vai buscar a água para abastecer estômagos insaciáveis de cidades tentaculares como Lisboa, a lógica do Crescimento é absurda.

CRESCER CRESCER SEMPRE... COMO A RÃ DA FÁBULA

Ao falar da Fábrica Daupias - fiação de lã - a «Revista Universal Lisbonense» (14/Agosto/1851) tinha um bom exemplo para fazer o elogio da «indústria ao serviço da agricultura».

Embora a lã não venha propriamente da terra mas dos carneiros que nela pastam, era na época (1851) um exemplo da indústria que não arruina a terra mas fomenta um produto dela.

Uma indústria, aliás, que ainda hoje se mantém «simpática»: não só porque produz algo de essencial à vida humana - roupa - mas porque vai sendo também cada vez mais uma raridade em vias de extinção, face à invasora vulgaridade das fibras sintéticas.

Não deixa, porém, de ser claro que a «Revista Internacional Lisbonense» denunciava uma certa «má consciência da indústria relativamente ao campo, que os poderes públicos definitivamente tinham abandonado à sua sorte com a célebre pauta aduaneira de 1837, o princípio do fim, a data-chave, no crescente monopolismo da sociedade portuguesa, onde se enxertava a indústria como engrenagem que, século e meio depois, ainda procura devorar, como um cancro, todo o corpo social do País.

Lisboa foi, nesse corpo, o primeiro grande teste.

E quando em 1880 D. Fernando inaugurava a primeira estação elevatória de água a vapor - a dos Barbadinhos - era a consagração do monopólio, da concentração, das necessidades de um aglomerado cada vez mais exigente.

A água que desde os romanos era trazida de Belas-Carenque, a 30 Km da cidade, passava em 1880 a vir do Alviela (Olhos de Água) a 114 Km e em 1980 vem do Castelo do Bode, já a 200 Km.

Onde irá Lisboa, sempre a crescer, buscar a água daqui a outro século?

A 400 Km de distância, logaritmicamente, mas onde?

A BIPOLARIZAÇÃO EM 1865

As grandes opções do plano já se discutiam em 1865!

Num curioso artigo do «Archivo Pittoresco», Ignácio de Vilhena Barbosa dava conta dessa bipolarização que, um século depois, continua vigente e quase sem alterações.

Apenas com alguns fracassos no caminho percorrido por um dos contendores: pelo que ouvimos aos ideólogos representantes da indústria, ainda existe muita gente no campo, pelo que o objectivo estratégico lançado pela pauta aduaneira de 1831 - e respectiva política proteccionista - não terá conseguido os êxitos que pretendia na literal liquidação da produção agrícola.

Tratava-se - diz Ignácio de ViIhena Barbosa - «de designar a vida ou ocupação que convinha a Portugal».

E acrescenta o arguto cronista:

«Uns optavam pela indústria agrícola, dizendo que uma Nação, que a Providência colocara em um país tão fértil (...) devia ser, tinha obrigação de ser, essencialmente agrícola.»

«Outros, vendo que a indústria fabril era a feição mais proeminente deste século, prognosticando que ela seria em breve o mais poderoso elemento da civilização e a par disso crendo que as nossas ricas províncias ultramarinas não tardariam a constituir-se em grandes mercados de consumo para os produtos industriais da metrópole, opinaram em favor deste ramo da indústria.»

Era a bipolarização.

Era o monopolismo industrialista de vento em popa.

Era fazer de Lisboa o concentracionário fabril de manufacturas que as «colónias» depois sugariam em troca das matérias-primas que de lá viessem.

Era o sonho imperial típico de século XIX, mas típico ainda do século XX.

Porque o mesmo ou maior desprezo pela agricultura, pelo «primado da agricultura» se continua a ouvir e a perceber, através dos discursos mais ou menos inflamados da mesma ideologia.

A diversidade dos campos - pequenos e médios agricultores, pequenos e médios aglomerados - já se visionava nessa época como o principal obstáculo à massificação monopolista que assumia o nome do Progresso e, posteriormente, os de crescimento ou desenvolvimento.
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(*) Este texto de Afonso Cautela, só muito remotamente inspirado em Schumacher mas que pode ficar incluído na série, foi publicado na revista «Come e Cala», em 3–12-1981

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TEMPO DE VIRAGEM (*)

[«Crónica do Planeta Terra», «A Capital» , 10-8-1985]

Na esteira de E. F. Schumacher, pensador e economista falecido em 1977, multiplicam-se os simpósios e as mesas-redondas para estudar a sua obra e desenvolver as premissas do seu sistema filosófico.

As consequências deste pensador rebelde são tanto mais tremendas quanto, até hoje, ainda não foi possível recuperá-lo e pô-lo ao serviço do sistema que combateu. O seu ensaio sobre «economia budista», caindo como um raio sobre os meios científicos académicos da época, suscitou os inevitáveis engulhos, mas desencadeou também uma atenção crescente dos investigadores que compreenderam encontrar-se aí a viragem necessária.

E não falo dos místicos que há muito se converteram à sabedoria primordial, falo dos cientistas de cuja «positividade» não se poderá duvidar nem pôr em causa. Tão-pouco falo de escritores, artistas e pensadores que assumem hoje a radicalidade contra o sistema. É fácil, contra esses, ao cientista ortodoxo atirar-lhes o anátema de «místicos» com toda a carga pejorativa que o cientista coloca nesta palavra.

Já a meio da década de 80, estamos em Portugal na mesma situação intelectual que acolheu, durante os anos 50 e 60, as ideias revolucionárias de E. F. Schumacher sobre a economia e o crescimento económico erigido em deus dos planificadores.

«Louco idealista» foi o menos que chamaram então a Schumacher.

Mas é ainda o que lhe chamam em Portugal os pretensos vanguardistas, exactamente quando os seus livros se tornaram «best-sellers» mundiais, quando por toda a parte se formam sociedades para estudar a sua obra, quando o seu ensaio «Economia Budista» se tornou um
clássico e quando a sua palavra de ordem «small is beautiful» se tornou bandeira de importantes movimentos sociais.

Regularmente, o Grupo de Desenvolvimento de Tecnologia Intermédia, de Londres, ao mesmo tempo que publica a revista «Resurgence» promove colóquios sobre a obra de Schumacher para os quais convida cientistas de nomeada. Um desses simpósios foi coligido em volume, intitulado «The Schumacher Lectures».

NO GUETO E À MARGEM

Portugal, no seu habitual borralhinho cultural, continua à margem disto tudo. As questiúnculas internas do País, devidamente salgadas com os rigores da austeridade, não deixam os responsáveis (pelos principais pelouros da administração) perceber que o mundo intelectual de vanguarda marcha agora a outra velocidade, num outro comprimento de onda, movido por outras metas, inspirado por outros princípios, orientado por outra moral.

Imutáveis, monolíticos, imobilistas, indefectíveis, os discursadores oficiais do Reino consideram-se estrelas da última hora, campeões do progresso e da modernidade. Quando falam em modernizar o País, eles referem-se a coisas que deixaram de ser modernas há uns bons vinte anos. Os fósseis do nosso meio científico, intelectual e cultural são, com os seus pretensos modernismos, apenas risíveis, se vistos à luz da dinâmica tomada pelas correntes de fundo que agitam, de facto, a cultura contemporânea.

Uns porque agarrados à vulgata marxista, outros porque agarrados à bíblia estruturalista, outros porque eurocratas e europeístas, outros porque assim, outros porque assado, não é a sua figura de múmias o preocupante, já que o problema é deles.

Preocupante, para o País, é que são estas luminárias/alimárias quem continua a mandar aqui, através das chamadas tecno-estruturas, a decretar as escalas de valor onde os outros terão que ser aferidos.

As elites intelectuais em Portugal estão a conduzir-nos para uma espécie de gueto, para um buraco sem esperança nem horizontes, literalmente à margem da vanguarda europeia.

FIM DA VIA ÚNICA

A sociedade foi, durante séculos, impregnada por uma visão do mundo que, partindo da observação analítica da realidade - o método científico -, acabaria por institucionalizar e eternizar essa visão. A imagem estática da vida e do mundo acabaria por imobilizar a própria vida e o próprio Mundo, mumificado e paralisado na sua dinâmica natural. A realidade degradou-se e mutilou-se à medida dessa visão, que o método científico e a observação analítica impuseram.

O «drama», que fundamentalmente se traduz na crise ecológica de hoje, é que se tornou ontológico o que era metodológico, se fez definitivo o que era provisório, se instituiu em dogma o que começou por ser uma teoria. A sociedade passou a ser unidireccional e unidimensional. O que era uma das várias vias possíveis para essa sociedade, tornou-se a única que, ainda por, cima e como provam os factos (a crise ecológica), nem sequer era a melhor.

Até se modificar a raiz, a visão do mundo que está na origem da crise actual, vai um complexo processo de autocrítica, difícil de assumir principalmente pelos que têm uma profissão vinda directamente das ciências que essa visão do mundo sustenta. Não é das ciências em si que o impulso detonador para a mudança pode hoje partir, mas de uma posição filosófica, de uma visão do mundo-que se lhes antecipe e que tenha independência crítica em relação a elas.

É para esse salto em frente, para essa mutação qualitativa, para essa revisão da visão do mundo que apontam as eco-alternativas em geral e as tecnologias leves em particular.

A inércia dos meios científicos ortodoxos oferece uma resistência quase infinita a esta inovação crítica. E os próprios funcionários das ciências que materialmente beneficiam deste estado de coisas - estático e imobilista - constroem periodicamente teorias tendentes a conservar o «status», a manter o imobilismo, a prorrogar o sistema que hoje se encontra em guerra aberta com os ecossistemas.

Inclusive, o sistema adoptará e recuperará qualquer dinâmica nascente que ameace pô-lo em questão e em causa: a ecologia, por exemplo, já foi recuperada, esvaziada da sua radicalidade, posta ao serviço de tudo o que em princípio deveria contestar.
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(*) Este texto de Afonso Cautela, 5 estrelas sobre o novo paradigma, foi publicado, sabe-se lá com que habilidades, na «Crónica do Planeta Terra», «A Capital», 10-8-1985