domingo, 14 de dezembro de 2008

HÁ JÁ 29 ANOS

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Sexta-feira, 18 de Julho de 2003

AS METAS DA MORTE(*)

3/6/1979 - Com o terceiro maior desastre da história da aviação civil, o «dc-10» que se despenhou no aeroporto de Chicago, morrendo as 273 pessoas que seguiam a bordo e, possivelmente, mais duas crianças de colo, alguma coisa parece que terá de mudar no capítulo do gigantismo moderno.
O orgulho dos grandes aviões, capazes de meter lá dentro este mundo e o outro, levou inclusivamente a uma guerra de marcas em que os «boeing» americanos e os «airbus» europeus, travaram a mais renhida disputa.
No meio destas rivalidades, a catástrofe. E no meio da catástrofe, de novo as rivalidades que emergem de um montão fumarento de destroços...Chegou a correr o boato de que os «airbus» estavam também incluídos na ordem de paragem dada para todos os «dc-10». Mas o representante em Paris apressou-se a rectificar o que classificou do «erro involuntário». Afinal, o «airbus» continua de perfeita saúde e poderá, como todas as outras marcas, beneficiar deste súbito crack sofrido pelos 30 dc-10 nos Estados Unidos e mais outros tantos distribuídos por várias companhias de vários países do mundo: Japão, Espanha, Nigéria, Noruega, Dinamarca, Suécia, Itália, Canadá, RFA e França estão na lista.
E aqui se poderá dizer que começa a segunda catástrofe a que a primeira deu lugar. O gigantismo aéreo e a corrida entre os rivais que ele implica, tem este outro aspecto «apocalíptico»: desencadeia reacções em cadeia (quase) incontroláveis. E o que era, há minutos, a soberba segurança de viajar sem problemas, torna-se o pesadelo de milhares de utentes eventuais deste tão útil e rápido meio de transporte. O tráfego irá afunilar e sobrecarregar os aviões de outras companhias, tornando os voos destas, por congestionamento, também mais perigosos.
Se é certo que a dentuça branca do lucro se arreganha por trás desta sombra negra, para milhares de pessoas a viagem de avião deixou de ser aquela «alegria» segura e sem sombras que sempre se pretendeu fazer crer que era. Mesmo quando se realizava o balanço dos mortos que esse «meio de progresso» já dera ao Mundo, ressaltava, em última análise, o pressuposto de que o progresso não se faz, afinal, sem um certo custo em sangue, suor e lágrimas.
E a qualidade de vila, tão cantada pelos discursos dos desenvolvimentistas, onde está? Tal como os milhões de habitantes que, na Pensilvânia, viram todo o sou conforto de americanos afundar-se no horror de um súbito regresso às cavernas (caso o reactor de Three Mile Island tivesse derretido), onde está, afinal, a tão prometida felicidade que todas estas maravilhas do progresso nos iriam trazer?
De repente (questão de segundos) a mais avançada civilização tecnológica coloca as pessoas em situações que começam a ter laivos impressionantes de barbárie a mais cruel. De repente, o preço pelo «conforto» começa a ser demasiado alto e pesado. Exigem-nos a vida, a saúde, a segurança. E também a alma. A engrenagem triunfalista do desenvolvimento, das proezas tecnológicas, das indústrias pesadas e altamente tóxicas ou perigosas, o absurdo e crescente gasto de energia, o famoso produto nacional bruto, as metas a atingir para vencer A, B e Z, esta corrida absurda e fanática para o abismo e a morte - eis que alguns começam vagamente a compreender que tudo isto é o tal progresso, a tal felicidade, a tal «qualidade de vida», o tal «desenvolvimento», o tal «conforto» que nos prometeram e de que tanto nos falam, quando querem meter-nos no Mercado Comum europeu, a pretexto de que estamos atrazadíssimos nessas metas todas.
De facto, se o progresso é ter cada vez mais catástrofes aéreas, petroleiros partidos, cancros, suicídios, toxicómanos, centrais nucleares com graves erros de instrumentação e aviões com defeitos graves e potencialmente perigosos, como em relação aos «dc-10» reconheceu oficialmente a Administração Civil Americana (FAA), qual o português que não estará ansioso por se meter no Mercado Comum e poder ter isso tudo, com fartura, ao almoço, ao jantar e à ceia? Quem não aspirará a tanta qualidade de vida», nós que temos vivido, até agora, principalmente, os desastres e as catástrofes do subdesenvolvimento tecnológico?
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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «Correio da Manhã» (Lisboa) , 3/6/1979