sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

HÁ JÁ 35 ANOS

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sexta-feira, 3 de Janeiro de 2003-scan

ÁGUA:ATÉ QUANDO? (*)

[jornal «Diário do Sul», Évora,29-6-1974]

A escassez de água que os jornais têm vindo há meses a noticiar com insistência, as queixas das mais diversas localidades que, no entanto, não chegam para formar um coro ou clamor audível para lá da simples notícia de uma coluna, perdida entre anúncios de meia página - oferece um micro-modelo curioso do que irá passar-se em escala possivelmente planetária, não só com a água (bem inestimável, que, com a saúde, só damos por ela quando não a temos) mas com os outros bens até agora gratuitos: ar, silêncio, segurança.

De tal modo nos consideramos em abundância perpétua de tais bens, que é sempre sob o prisma da anedota que encaramos a sempre «remota» hipótese e perspectiva da sua escassez. Dizer que a água, o ar, o silêncio e a segurança irão rarear nos próximos anos e faltar por completo?

Acima de tudo o nosso sistema de defesas «morais» está de tal maneira bem montado que, no caso da água, rechaçamos sistematicamente a hipótese real - a da sua efectiva e real escassez na origem - para nos entretermos com uma problemática toda tecida de dados fictícios.

Que a água falte por falta de estruturas, por deficiência de serviços, porque alguns têm mais em que pensar do que nos interesses reais das populações munícipes, e que há dinheiro para tudo menos para as obras de interesse público, parece não haver dúvida. Os jornais bateram nessa tecla, como lhes competia, os serviços alegaram razões que atingiram o paroxismo cómico, ou pura e simplesmente bateram com a porta na cara do jornalista o que, diga-se de passagem, é muito bem feito.

Enfim, as que decidem da água sabem que, por aí, pisam terreno seguro: sabem que a «maioria silenciosa» tem demonstrado, há anos e mesmo há séculos, um estupendo estoicismo para suportar dessas e doutras escassezes, e que o facto de estar um mês sem água não mata ninguém embora possa pôr muitos doentes.

Ora se não mata mas mói, isso é o que afinal os municipalizados e outros serviços «públicos» pretendem. Se a vítima adoece, tanto melhor para a comunidade e tanto pior para a vítima. Aguente-se, salve-se quem puder: é ainda o grande lema de tais serviços. O paciente vai ao médico, bebe laranjada, lava-se no mijo, enfim, desenrasca-se. O munícipe desenrasca-se sempre, como diária e secularmente se comprova.

Folclore e cantigas obturam o resto da provável ruptura, entretanto vem o Inverno e com as primeiras chuvas o problema da água apaga-se da memória de todos. Inclusive da memória do munícipe que sofreu as agruras da seca.

Ridículo até se tornaria que os jornais, já outoniços, continuassem então com estas jeremiadas da «falta de água», boas para ocupar primeiras páginas precisamente nos meses de Verão, antes da Volta e depois do Campeonato.

Logo que chegue a Volta, verão que a água... se acabou como assunto. Os grandes títulos irão então para o Agostinho desta época. A água foi, felizmente, assunto neste interregno de facto dramático em que não havendo futebol, nem misses, nem concursos, nem Volta, os «mass media» se vêem e desejam para encontrar assunto alimentar.

Ao nível administrativo, o problema da água não me parece conter parâmetros muito diferentes destes nem mais dignos de atenção, de qualquer modo resolúveis sempre com uma boa laracha, uma boa anedota, uma boa piada...

O curioso da questão é que o problema, para lá de ser administrativo (secular e tradicionalmente administrativo como o Aqueduto das Aguas Livres está lá a atentar... ) começa a ser de outra ordem. Para lá de ser um problema 1ocal e politicamente de curto prazo, é já um problema universal e de médio prazo. Não de política de campanário mas de política planetária.

Sem sofismas e sem medo às palavras, digamos pura e simplesmente que a escassez de água nas pontos a, b, x, ou z, não é já só um problema de condutas e de "pipelines" . Ainda que, por milagre, esses "pipelines" e essas canalizações surgissem de um mês para o outro, o que talvez não surgisse era a água.

UMA BREVE FÁBULA

A psicologia da escassez tem meandros giríssimos e qualquer pode fazer a experiência, chegando sempre à mesma e cínica conclusão: a espécie humana não tem conserto e vai merecer, totalmente, a morte que a espera: à sede.

Faça-se a experiência em casa. Suponhamos que, em determinado momento, a água começa a gorgolejar na torneira do cidadão A, que industriado pela psicose em que os jornais o vêm «mergulhando», fica logo nervoso ao primeiro sinal de «grugru» na torneira.

Diz então com os seus botões: «Já cá me chegou também o petisco. E agora? Que vou fazer?»

Isto acontece, por exemplo, no 2º andar. Sabe ele, então, que no rés do chão, o vizinho B é boa pessoa e que está na disposição de lhe encher alguns tachos, se a água ainda correr nesse piso térreo. Assim acontece. Os vizinhos não são tão maus como os pintam. Quando já têm todas as superfícies côncavas repletas para, fazer face à crise, à escassez, a água começa a jorrar um pouco mais forte... Vizinho A e vizinho B entreolham-se um pouca envergonhados daquele afã. Um e outro riem-se do «susto» que apanharam, compreendem que afinal a água regressa e que foi só um precalço de canalização. E de novo a fartura. Esvaziam-se de novo todos os recipientes e o futuro é outra vez cor-de-rosa para o cidadão A, que ainda há pouco julgava ter chegado o seu último e apocalíptico minuto.

Ao nível da humanidade e no que respeita, não só à água, mas ao ar, ao silêncio e à segurança (à saúde), não parece que a humanidade vá agir de maneira diferente da dos vizinhos da fábula. É que não vai mesmo. Ainda por cima se industriada por técnicos eminentes que cultivam exactamente o mesmo tipo de mentalidade anti-prospectiva e anti-ecológica, embora se digam futuristas de grande futuro.

Logo: a humanidade mais os seus futurólogos de estimação terá pura e simplesmente o fim que merece.
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(*) Este texto de Afonso Cautela, nada de especial, foi publicado no jornal «Diário do Sul», Évora,29-6-1974, onde o Madeira Piçarra, seu director, me acolhia as prosas.©