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11-11-1972
UM BECO SEM SAÍDA(*)
(*)Este texto de Afonso Cautela permaneceu inédito
Alguns dos poucos que tentam levar até às últimas consequências as reflexões sobre o meio ambiente, sobre a vaga galopante da poluição, chegam inevitavelmente à conclusão de que a poluição é irremediável mas irremediável, também, a sua fatalidade.
Nem só na contaminação, porém, se verifica este ciclo vicioso, esta fatalidade, este "beco sem saída"; eu diria que a (civilização da) Abjecção se caracteriza exactamente por conduzir a becos sem saída.
Não falta, também e por exemplo, quem lamente a contaminação dos alimentos pela Química e a mortandade cancerígena provocada por aditivos, corantes, pesticidas, detergentes, etc...: mas logo a seguir se verifica que nada é possível fazer contra, pois a necessidade de "conservação" dos alimentos pela Química é inelutável e resulta de uma característica inalienável do Sistema, característica mais ou menos definida nestes termos: "o aumento constante de população, a elevação (sic) do seu nível, de vida e a complexidade crescente das trocas comerciais, tornam inevitáveis o armazenamento dos produtos alimentares e, por esse facto, a. sua protecção contra a deterioração, sendo assim inevitável a incorporação de anti-sépticos no trigo, na farinha, na manteiga e nos frutos, que se têm de armazenar durante meses."
Outra inevitabilidade, outra necessidade, outra fatalidade, outro beco sem saída é o que ocorre com os medicamentos químicos: alguns já ousam reconhecer o abuso que constituem, mas logo a seguir afirmam que o Sistema não pode passar sem eles, porque não conhece outras soluções e outras terapêuticas.
A pouco e pouco, o Sistema auto-critica-se mas para verificar sempre a sua própria incapacidade ou impotência em debelar na base as seus vícios e crimes radicais.
Tudo isto vem apenas dar razão ao crítico radicalista - o "hippy", por exemplo - da civilização e aos que entendem não ser possível fazer reformas mas unicamente substituir esta por outra civilização. Alternativas não faltam.
No fundo, o “hippy", o vegetariano, o budista, o macrobiótico, apenas aproveita a auto-crítica feita até certo ponto pelos próprios funcionários do Sistema, forçados a reconhecer os vários "becos sem saída" da civilização, e a tornar automaticamente lícita, necessária, urgente a Utopia que pretende exactamente conhecer outras alternativas de sobrevivência para a humanidade, reconhecendo na Tecno-burrocracia a sua estrutura homicida básica.
Evidenciada fica também a ineficácia dessa crítica reformista (funcionária) que se vai limitando a reconhecer o Mal e, quando muito, a propor medidas de melhorar a Mal. Ora o que a Utopia propõe não é melhorar o Mal mas erradicá-lo. Liquidá-lo.
Não posso nem quero ocultar a satisfação que me dá verificar os balanças da Porcaria feitos pelos próprios responsáveis dela.
Ao enunciar os efeitos cancerígenos dos corantes químicos utilizados nos alimentos, provoca-me uma infinita hilariedade ler a seguir que o número desses corantes é às dezenas e que as legislações mais "avançadas" dos países mais prósperos, ditos desenvolvidos, num gesto nobilitante em defesa da saúde pública do consumidor, apenas autoriza 17 desses corantes...
Não posso conter o riso ao ler mais ainda:
"A base destes resultados" (refere-se o articulista às conclusões sabre a acção cancerígena dos corantes) "decretou-se em 1958, numa emenda à Lei sobre géneros alimentícios, uma forte restrição de utilização de corantes de géneros a1imentícios, pelo que actualmente só são (sublinhado meu) autorizados 17 corantes sintéticos - seis vermelhos, quatro amarelos, dois laranjas, três azuis e dois pretos."
E o articulista, funcionário dilecto, vitorioso escreve:
"Todas as substâncias estranhas só são permitidas enquanto não houver indício de efeitos negativos sobre a saúde."
Tranquilizemo-nos: eles investigam e só não permitirão o uso dos cancerígenos quando houver um indício...
Para rir são também as intérminas discussões sobre a nocividade ou inocuidade dos insecticidas para as plantas, ou dos antibióticos para o gado.
Em tais casos, o "rigor científico" (sic) consiste em dar crédito às mais grosseiras e ridículas mistificações: experiências com ratinhos, como se a fisiologia humana estivesse ao nível. de complexidade e sensibilidade dos ratinhos (os cientistas devem julgar por si...); opiniões emanadas de doutos cientistas que, no fundo, são apenas assalariados de gigantescas e poderosas empresas químicas, com interesses arreigados na produção de antibióticos, insecticidas, corantes, aditivos, detergentes, etc., etc.; por fim, respeitáveis academias que, reagindo aos acontecimentos 300 anos depois deles se darem, ainda estremunhadas, de remela no olho, emitem pareceres que se pretendem autorizados, pertinentes, actualizados.
De toda esta mascarada fazem-se artigos de informação para os consumidores. E se o escândalo com certos produtos é tão grande que tem de ser reconhecido, logo o processo será arquivado meses de pois e logo entrarão a circular uma data de marcas novas, ditas inócuas.
"As pesquisas com ratinhos continuam", continua o articulista «e não se pode por enquanto afirmar de seguro nem a inocuidade nem a nocividade."
Assim, entre dentes, nas meias tintas propiciatórias, entre as 10 e as 11, se descarta a gravidade do assunto. Aliás, sendo a matéria telecomandada por empórios tão poderosos, que outra chance fica aos cientistas senão deixar-se telecomandar e ao consumidor desconfiar, ou sistematicamente recusar o que nos for possível recusar?
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(*) Este texto de Afonso Cautela permaneceu inédito
domingo, 9 de dezembro de 2007
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